Caminho, pé ante pé, cuidadosamente, no passeio que um velho e experiente calceteiro predestinado vai construindo em chão firme, mesmo à minha frente. Avanço sobre cada pedra que ele assenta. Primeiro a medo, depois com os dois pés... e fico à espera do próximo passo.
Imito-lhe o ritmo das marteladas precisas, que fragmentam os paralelipípedos de marfim, batendo silenciosamente com a minha bengala de pau de cerejeira no chão.Respiro fundo, devagar, serenamente, como quem tem a paz de começar uma vida nova, por estrear, com certezas divinas e seguranças de si mesmo. O cheiro da erva cortada, terra seca e pólen ardente dos malmequeres ao sol envolve-me numa plenitude estival, virtual, de meados de primavera.
Sinto este consolo e alívio à custa de forças intensas que se contrabalançam, num equilíbrio tenso, em cuja estabilidade escolho não pensar. O ar é denso... o ambiente ameaça rasgar. Mas se semicerrar os olhos as imperfeições da pintura esbatem-se, as incoerências passam despercebidas, os erros de lógica escapam impunes, e os bugs ficam por corrigir.
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Dou mais um passo no novo pedaço de calçada marfinada, faiscante ao sol. Fecho mais um pouco os olhos.
Subitamente, o ar toma sabor e cheiro dulcíssimos como chocolate branco, mesmo quando ia respirar fundo e suspirar. Encho o peito daquele gás-fluido de outras paragens que ali foi ter vindo não sei de onde. Os alvéolos afogam-se imediatamente, como quando um náufrago inspira, desesperado, uma golfada de água salgada!
A minha hemoglobina suga imediatamente cada átomo daquela mistura de estranhos elementos que nunca se conseguiram isolar laboratorialmente, e leva-a rapidamente ao coração. Tento expirar, mas é em vão. Sinto-me tépido, mas envolvido em suor nervoso, gelado, que evapora rapidamente. Tenho sensação de pele queimada. Todo eu sou formigueiros. Tenho febre, tenho dores no corpo. Estou inflamado! E agora já estou bem e tudo isto demorou apenas meio minuto. O coração bate-me descompassado pela descarga adrenérgica. Não consigo estar quieto. Calma... onde estou? Expirei...
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É estranho como o sol faz das suas. Se há cupido querubim, é ele, porque se decide a iluminar, a indicar, com um simples raio dourado, pessoas nas situações mais inesperadas, incómodas, inoportunas, injustas, impossíveis! Como se quisesse martelar nas peças do puzzle para que os entalhes... fit! Não é o encaixe induzido, é o encaixe forçado! Mas as peças do tetris não se compadecem, e continuam a cair. Amanha-te! E fica-se a rir, o querubim.
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Danço agora na corda de um violino, embalado em tons docemente cortantes, mergulhado numa voz tão forte e tão frágil, choro de bebé real camuflado de imitação. Um pingo do mel que não querias derramar escorre pela minha corda bamba, desmielinizada, abafando as vibrações do meu pequenino mundo de rocha metamórfica, solidificado tão só recentemente, onde mal se vislumbra, já perigosamente longe, um esboço de calçada de marfim; levas-me para o outro lado do oceano, semeando em mim sonhos que não julgava possíveis de germinar.
No quartzo, feldspato e mica do meu planeta árido, agora visível pela desconstrução da minha tela vital, estival, virtual, tentam irromper raízes de um colossal embondeiro principesco, que, privado de alimento, sucumbirá, vítima de autofagia.
Sei que assim é... sei-o tão bem! Mas sonho com esse embondeiro já grande, cheio de pássaros, a dar-nos apoio, sombra, suporte, do alto dos seus anos que viveríamos. E mordo os nós dos dedos com força porque também sei que entristeço porque autorizei a memória de uma árvore que nunca será, ao negligenciar o que uma semente poderia vir a ser.
E da minha ameia, da minha torre, da minha corda bamba de violino chorão, estou suado, amestrado, retido pelo teu olhar aí em baixo, de coração sem diástoles, respirando mais depressa do que devia e mais devagar do que quero, em busca daquele gás-fluido que já me viciou mas que não consigo encontrar; não sei quem és, porque não sei ainda quem sou...
Tenho medo. Quero permitir-me voltar à minha calçada marfinada, tocar xilofone em cada pedra com a minha bengala... esperar que o meu planeta granítico seja primeiro colonizado por líquenes, musgos, pequenos cogumelos... e quando a rocha mãe estiver quebrada e tiver dado origem a solo fértil, talvez um embondeiro.
Caminho, pé ante pé, cuidadosamente, em caminhos calcetados. Respiro profunda e serenamente a paz dos justos. Olho por cima do ombro e vejo o musgo verde tomar conta das brechas por entre as pedras da calçada...
«Um pingo do mel que não querias derramar escorre pela minha corda bamba, desmielinizada, abafando as vibrações do meu pequenino mundo de rocha metamórfica, solidificado tão só recentemente»
ResponderEliminarerrr............
então esse Liverpool, hã?? ganda jogão!!
Levanto-me e aplaudo de pé, efusivamente.
ResponderEliminarMuito bom! :)
Achei "o teu texto ... muito bem". Transmites o que sentes, aliando os conhecimentos da biologia dos homens que tens, com a tua sensibilidade. Daqui resulta uma harmonia bastante atraente. O texto, na sua arquitectura geral, está fluído e isso hoje em dia, favorece muito a aceitabilidade do público àquilo que está escrito. Todos ficamos com a sensação de que há metáforas atrás de metáforas, atrás de metáforas, que só tu as consegues entender - mas há um valor intrínseco no texto (e isso é muito importante), independentemente se é inteligível pelos outros, ou não. Em suma, muito bem, gostei! Compro. Ps: Grande abraço.
ResponderEliminarQuartzo, feldspato e mica... isso é sem dúvida tirado dos livros de uma aventura... Esse colossos da literatura infanto juvenil. As gémeas entretanto já devem ser boas n?
ResponderEliminarÉ verdade. Realmente foi nos livros de "Uma aventura" que aprendi isso ... aliás, tem piada que eu tinha comentado com uma certa pessoa que tinha sido, e que a minha geração toda tinha aprendido do que era feito o granito com esse livro... ;) Atempadamente comentarei o meu próprio texto... acho que nem eu ainda o analisei bem. Estejam atentos!
ResponderEliminarSinto-me cansada e com os olhos a querer fechar... portanto é um bocado arriscado comentar agora. Mas de qualquer forma, vou tentar, pq parece q se adia sempre td para um amanhã em q vamos ainda adiar para um dia seguinte indefinidamente e não quero q isso aconteça... Finalmente... sabendo eu com q situação e pessoa se relaciona este texto, a leitura torna-se mais clara e penso conseguir enquadrar cada frase no contexto num processo de descodificação... assim, vou procurar na medida do possivel, dar um toque pessoal ao comentário começando no avanço primeiro a medo e dps com os dois pés e a espera ansiosa do próximo passo
ResponderEliminarrealmente pelo que me apercebi, tu avanças mm com os dois pés, o q eu pessoalmente admiro visto o meu medo de avançar com o segundo... Mas acho q quem avança com os dois, tem logo um aspecto a seu favor, o facto de ter arriscado, permitindo q algo de bom aconteça ou mm q n seja o caso n vai acumulando "e se"... Logo, a partir daí, é esperar, ver o q vai acontecendo, como tu retrataste em diversas situações umas melhores e outras piores (td faz parte)... Vivendo um misto de emoções, medos, desejos... q eu senti nas palavras que li... E queria só destacar o facto de teres referido as imperfeições / incoerências as quais tentaste q passassem desapercebidas o que pode ser bom ou n, é bom viver com magia e ilusão mas quando é uma magia q é instável demais para se aguentar, tvz seja preferível encarar as imperfeições e ver o que fazer com elas... Mt mais faltava por dizer mas vou referir somente uma outra parte q me chamou a atenção que é a seguinte "(...) se decide a iluminar, a indicar, com um simples raio dourado, pessoas nas situações mais inesperadas (...), é algo que acontece mt frequentemente, e eu só te posso desejar q essas situações se desenvolvam sempre da forma mais positiva possivel... Beijinhos, desculpa a confusão mas já sabes...
"me"
Não sei bem por onde começar... sabes que também eu ando com falta de metionina dados os aconteimentos dos últimos dias (ossos do ofício)! Posto isto, prefiro começar o meu comentário com um profundo elogio à forma e elegância do texto. Quanto à interpretação dificultada pela subjectividade das palavras já dizia fernando pessoa que:
ResponderEliminarO poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração
Excluindo a primeira quadra, porque sei que mesmo que metaforicamente, este texto é uma realidade verdadeira, viva e pulsátil do teu presente , penso que cada um de nós encontrará uma forma de interpretação (também ela subjectiva) que permitirá senti-lo com a mesa intensidade com que o escreveste. Resumindo, e comentando o tetris 5, não é problemático que não se entenda a verdadeira essência. É importante sim, mas não essêncial (isto desde que possamos descobrir um pouco de nós).
Já que estás perdoado pela subjectividade passemos ao conteúdo... Conheço-te não há muitos anos e quase sempre se apoderou de ti um vasto conjunto de contrariedades... principalmente em épocas cruciais! Contudo, de uma forma ou de outra, sempre te foste safano entre passeios descalcetados e ilhéus cúbicos banhados por terra e beatas de cigarros. A inconstância da tua vivência sempre esteve patente mas mascarada pelo impulso do tempo que nos obriga a percorrer num espaço que passa despercebido. Mas quando tudo acalma e o tempo volta, vazio e solitário, a memória afaga aquilo que o preenchimento das horas excretou... E a tua vida tem sido pautada de oscilações de dinâmica entre adágios e allegros e retardos... Contudo, há momentos na vida em que somos obrigados a parar porque alguém ou algo se atirou para a passadeira sem olhar... apenas nós estávamos atentos! Neste sentido,peno que este texto é coincide com o memento em que o peão avança e tu já estás a prever a situação. A procura de um mundo que se constrói peça a peça, minuto a minuto é já um indício de inflamação, de rejeição, de protecçao! Algo vai mal e o teu SNC percebe isso e responde mediante actos reflexos de uma escrita líquida e fluente... como um compositor que escreve uma música enquanto pensa no produto final. Não querendo alongar por muito mais o méu comentário, gostaria de dizer-te que estás no bom caminho. Continua sobretudo porque tu sabes melhor do que ninguém que a vida é bela... o ar é belo! Liberta-te do passado, faz um reset ao disco e recomeça porque o mundo está aos pés de uns quantos STPs. Mas para isso é preciso que te afastes do que te atormenta... aí meu amigo... nada te deterá! STP digo aqui para todos ouvirem sem qualquer problema que poucas pessoas conseguem fazr um caso curto de fisiopat sem estudar afincadamente! Poucos são os que fazem desenhos como o tetris 5... poucos são os que driblam a bola e se for preciso as cordas de uma guitarra! É por isso que te digo para teres força e coragem para esquecer o que ficou para trás e emergir num mundo que ainda te pertence e que incessantemente espera por ti. O presente está do teu lado... aproveita-o! Não deixes que o passado apague o futuro brilhante que te espera:)
Desta tua colega e amiga
Isabel;))))
A propósito... só agora revi o texto e tem erros sorry mas não sei corrigir um comment!!!! LOL
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