Sobrevoo em zigue-zague rochosos campos verdejantes de primavera. O pequeno avião desvia-se com perícia do esbatido nevoeiro marinho de algodão doce e dos picos cortantes dos montes e das escarpas da orla costeira; saboreio a fragrância do oceano gelado e os salpicos salgados de espuma na cara, borrifados pelo vento que assobia nas asas, mastigado pela hélice do motor, que trabalha em silêncio absoluto...
Numa relação de eterno amor intempestivo, as vagas açoitam as penedas lá em baixo, e ciclicamente lambem com volúpia as intercaladas línguas planas de areia grossa, que sorvem quase imediatamente aquela espuma de saliva salgada... tssssssssssssssss...
Do lado de fora do cockpit, um enorme holograma lilás da minha irmã vai falando comigo e dando-me instruções, com um mapa na mão.
- Tens que ir mais para sudeste! Aquela horta ali à frente, vês? Depois há um cotovelo na costa e viras mais à esquerda...
- Ok. Cheira a mar! Notas?
- Concentra-te! Nem te disse onde é que vais aterrar! Nem te lembras disso! Será possível? Tótó!
Deito-lhe a língua de fora e esbugalho os olhos. Puxo e empurro os comandos do avião, subo e desço vertiginosamente; corto-me a mim mesmo o fôlego, fecho os olhos, como uma criança num baloiço, alto, cada vez mais alto, baixo, cada vez mais baixo, viciada na sensação de perigo na barriga. Depois sento-me melhor na cadeira de piloto e tento respirar mais devagar. Tento acariciar as borboletas do meu estômago para as acalmar.
Aterro numa fita de terra batida enlameada, ladeada de trevo e campaínhas cobertas de orvalho gelado. Vou caminhando em direcção à margem de um rio que se junta ao mar, enquanto o mato rasteirinho me ensopa o couro das botas. Num bote, está um homem de cabelo branco; enquanto me aproximo, ele vai arrumando as tralhas da pesca sem olhar para mim. Chego-lhe à beira.
- O mar está meio bravo e vamos demorar a atravessar. Teve dificuldade em chegar? Sua avó está com as dores do reumático, é bem capaz que chova.
- Vim bem! Uns nevoeirozitos mas nada de especial. Pintou o barco outra vez?
- Vista esse oleado aí, ou ficará encharcado com esta névoa!
O velho remava com perícia e guiava o barco, sulcando aquele braço de mar que esmurrava a foz do rio, inquieto de milhares de pegadas que apareciam e desapareciam quase instantaneamente, pisadas pelo vento. Também eu me sinto agora inquieto, encostado à popa do bote, de mão esquerda medrosa crispada na borda do barco, enquanto os dedos vão ficando brancos de gelo, beijados pelas ondas mais afoitas.
*
mal posso esperar pela parte II
ResponderEliminarRui A.
Oi Gatinho!
ResponderEliminarEntão será que tu se perderá nesse amor incondicional...aguardo a continuação
Recomendo «The Naked Lunch» (Festim Nú, na tradução portuguesa), de William S Burroughs, que vem na onda deste texto e de anteriores. Outro livro construido a partir de sensações e pulsões do inconsciente. A diferença é que Burroughs falava de homossexualidade e drogas. E muitas vezes o assunto mudava a meio da frase.
ResponderEliminarMas onde é que tu vais num bote pelo meio da névoa?
ResponderEliminarAljezur
ResponderEliminarAljezur... não sei... mas acho que não.
ResponderEliminarAgendei para este fim de semana a continuação, mas... duvido. Estou com uma quebra de energia, mas os nossos técnicos já estão a tratar das reparações necessárias para poder levar a vós a qualidade a que já vos habituei... lol!
Abraços...
Acres pá! Não vales népias
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