27 de maio de 2005
Bossal
25 de maio de 2005
Tetris 4 - Quartzo, feldspato e mica
Dou mais um passo no novo pedaço de calçada marfinada, faiscante ao sol. Fecho mais um pouco os olhos.
Subitamente, o ar toma sabor e cheiro dulcíssimos como chocolate branco, mesmo quando ia respirar fundo e suspirar. Encho o peito daquele gás-fluido de outras paragens que ali foi ter vindo não sei de onde. Os alvéolos afogam-se imediatamente, como quando um náufrago inspira, desesperado, uma golfada de água salgada!
É estranho como o sol faz das suas. Se há cupido querubim, é ele, porque se decide a iluminar, a indicar, com um simples raio dourado, pessoas nas situações mais inesperadas, incómodas, inoportunas, injustas, impossíveis! Como se quisesse martelar nas peças do puzzle para que os entalhes... fit! Não é o encaixe induzido, é o encaixe forçado! Mas as peças do tetris não se compadecem, e continuam a cair. Amanha-te! E fica-se a rir, o querubim.
Danço agora na corda de um violino, embalado em tons docemente cortantes, mergulhado numa voz tão forte e tão frágil, choro de bebé real camuflado de imitação. Um pingo do mel que não querias derramar escorre pela minha corda bamba, desmielinizada, abafando as vibrações do meu pequenino mundo de rocha metamórfica, solidificado tão só recentemente, onde mal se vislumbra, já perigosamente longe, um esboço de calçada de marfim; levas-me para o outro lado do oceano, semeando em mim sonhos que não julgava possíveis de germinar.
Sei que assim é... sei-o tão bem! Mas sonho com esse embondeiro já grande, cheio de pássaros, a dar-nos apoio, sombra, suporte, do alto dos seus anos que viveríamos. E mordo os nós dos dedos com força porque também sei que entristeço porque autorizei a memória de uma árvore que nunca será, ao negligenciar o que uma semente poderia vir a ser.
E da minha ameia, da minha torre, da minha corda bamba de violino chorão, estou suado, amestrado, retido pelo teu olhar aí em baixo, de coração sem diástoles, respirando mais depressa do que devia e mais devagar do que quero, em busca daquele gás-fluido que já me viciou mas que não consigo encontrar; não sei quem és, porque não sei ainda quem sou...
Tenho medo. Quero permitir-me voltar à minha calçada marfinada, tocar xilofone em cada pedra com a minha bengala... esperar que o meu planeta granítico seja primeiro colonizado por líquenes, musgos, pequenos cogumelos... e quando a rocha mãe estiver quebrada e tiver dado origem a solo fértil, talvez um embondeiro.
Caminho, pé ante pé, cuidadosamente, em caminhos calcetados. Respiro profunda e serenamente a paz dos justos. Olho por cima do ombro e vejo o musgo verde tomar conta das brechas por entre as pedras da calçada...
18 de maio de 2005
Crónica do amor incondicional - parte 1
Sobrevoo em zigue-zague rochosos campos verdejantes de primavera. O pequeno avião desvia-se com perícia do esbatido nevoeiro marinho de algodão doce e dos picos cortantes dos montes e das escarpas da orla costeira; saboreio a fragrância do oceano gelado e os salpicos salgados de espuma na cara, borrifados pelo vento que assobia nas asas, mastigado pela hélice do motor, que trabalha em silêncio absoluto...
Do lado de fora do cockpit, um enorme holograma lilás da minha irmã vai falando comigo e dando-me instruções, com um mapa na mão.
Aterro numa fita de terra batida enlameada, ladeada de trevo e campaínhas cobertas de orvalho gelado. Vou caminhando em direcção à margem de um rio que se junta ao mar, enquanto o mato rasteirinho me ensopa o couro das botas. Num bote, está um homem de cabelo branco; enquanto me aproximo, ele vai arrumando as tralhas da pesca sem olhar para mim. Chego-lhe à beira.
- O mar está meio bravo e vamos demorar a atravessar. Teve dificuldade em chegar? Sua avó está com as dores do reumático, é bem capaz que chova.
O velho remava com perícia e guiava o barco, sulcando aquele braço de mar que esmurrava a foz do rio, inquieto de milhares de pegadas que apareciam e desapareciam quase instantaneamente, pisadas pelo vento. Também eu me sinto agora inquieto, encostado à popa do bote, de mão esquerda medrosa crispada na borda do barco, enquanto os dedos vão ficando brancos de gelo, beijados pelas ondas mais afoitas.
14 de maio de 2005
Plasmodium (não) vivax ®
Somos feitos de C, N, O.
Somos feitos do asfalto que percorremos, dos traços descontínuos que desaparecem, efémeros como flashes.
Somos feitos dos semáforos vermelhos e stops que não respeitamos, dos carros que ultrapassamos, dos velhinhos que ajudamos a atravessar as ruas. E dos carros que nos atropelam.
Somos feitos do ar que inspiramos, e não do que expiramos. Não somos feitos do cabelo que cortámos ou que nos caiu...
A água que vertemos ainda há de fazer parte de nós de novo.
Teremos sempre onde cair mortos e seremos sempre iguais a nós próprios; desejaremos sempre aos outros o dobro daquilo que eles nos desejam. Haverá sempre expressões arrogantes, verdades de La Palisse e ditos vingativos mascarados de bom samaritanismo.
Somos feitos dos amigos e amores que se foram embora, e seremos feitos dos que ficarem quando morrermos.
Somos feitos das dores que sentimos, dos sabores que experimentámos, dos odores que cheirámos e das cores e formas que pintámos.
Não somos feitos do que poderíamos ter feito. Somos feitos dos louros das acções para as quais tivemos força, dos saltos de fé que ousámos arriscar, do orgulho dos erros que tivemos a coragem de cometer. Em nós não há lugar para o arrependimento do que nunca fomos.
Somos feitos das lições que aprendemos, das cicatrizes de chicote que temos nas costas; mas também dos músculos que desenvolvemos e dos anticorpos que criámos.
Somos feitos de quem nos amou, de quem amamos e amámos. Somos feitos de quem nos magoou e nunca existiu. Somos feitos das paixões do presente.
Somos feitos de ganidos, latidos, ladrares e rosnares. Somos feitos dos mesmos órgãos e sistemas de órgãos que todos os dias envenenamos mais um pouco. E somos feitos da necessidade de excretar esse veneno, picando-nos uns aos outros.
Somos feitos do queijo e da ratoeira. Do queijo e da faca nas nossas mãos. Das facas de dois gumes que no-las cortam.
Somos feitos do fascismo, do comunismo, do socialismo e do neofascismo - tudo é uma questão de referencial einsteiniano.
Somos feitos de heroísmo cobarde; somos feitos de espiritualismo materialista; somos a espada e a parede.
Somos feitos de narcisismo falso-modesto.
Somos feitos de resignação megalómana. Somos lobos na pele de cordeiros, e nos tempos livres somos cordeiros na pele de lobos.
Somos minimalistas grandiloquentes.
Somos feitos de oscilação uniformemente variada.
Mas cada um de nós é feito das opções que toma.