27 de maio de 2005

Bossal

Gosto da palavra bossal. Tenho de admitir, é uma fraqueza. Mas é que esta palavra que compara algo a amimais possuidores de bossas é bastante ilustrativa destes algos. Vocês já devem estar a imaginar o Pires de Lima, ou então a programação da TVI, mas há por ai muitos bossais. Acham que não e estão com vontade de passar um bom bocado comtemplando metafóricos animaizinhos possuidores de bossas? Nada mais fácil.
Procedimento 1:
Nada mais fácil para encontrar estas espécies do que pegar num carro e entrar na selva urbana. Estas selvas são habitadas por grandes populações de tal espécie, de tal modo que é considerada praga. Medidas de controle de pragas estão a ser pensadas, como os iscos com veneno (usando como iscos telemóveis), vales de desconto de combustíveis armadilhados e velhinhas em passadeiras com mísseis tomhawk.
Procedimento 2:
Rumando a norte, pela A1, com a ajuda dum simples mapa, chega-se ao Marco de Canaveses. Aqui, não procure os espécimes wild type. Este microhabitat é o lar dum espécime de proporções históricas. Algumas espedições científicas já foram feitas e confirmam-no: este é o lar dum grande bossal! Mas despache-se, parece que este bossal encontra-se numa migração para amarante, na procura incessante de alimento.
Procedimento 3:
Quando tudo o resto falha, há uma salvação. Na capital, há uma reserva especial cinegética de bossais. Encontra-se um pouco abaixo do Jardim da estrela, na freguesia de S. Bento, local também conhecido como parlamento. Esta espécie de bossais é extremamente perigosa por isso só pode ser vista das galerias. Os espécimes encontram-se no cenro do recinto que lembra uma arena. Normalmente não são ferozes, passando grande parte do tempo descansando, dormitando nos seus lugares, acordando uma vez por semana. As palavras eleições, perda de privilégios e combate à corrupção são expressamente proibidas dentro do recinto.
Acho que conseguem! Boa sorte na caça ao bossal, a época está aberta!

25 de maio de 2005

Tetris 4 - Quartzo, feldspato e mica



Caminho, pé ante pé, cuidadosamente, no passeio que um velho e experiente calceteiro predestinado vai construindo em chão firme, mesmo à minha frente. Avanço sobre cada pedra que ele assenta. Primeiro a medo, depois com os dois pés... e fico à espera do próximo passo.
Imito-lhe o ritmo das marteladas precisas, que fragmentam os paralelipípedos de marfim, batendo silenciosamente com a minha bengala de pau de cerejeira no chão.Respiro fundo, devagar, serenamente, como quem tem a paz de começar uma vida nova, por estrear, com certezas divinas e seguranças de si mesmo. O cheiro da erva cortada, terra seca e pólen ardente dos malmequeres ao sol envolve-me numa plenitude estival, virtual, de meados de primavera.
Sinto este consolo e alívio à custa de forças intensas que se contrabalançam, num equilíbrio tenso, em cuja estabilidade escolho não pensar. O ar é denso... o ambiente ameaça rasgar. Mas se semicerrar os olhos as imperfeições da pintura esbatem-se, as incoerências passam despercebidas, os erros de lógica escapam impunes, e os bugs ficam por corrigir.
*

Dou mais um passo no novo pedaço de calçada marfinada, faiscante ao sol. Fecho mais um pouco os olhos.

Subitamente, o ar toma sabor e cheiro dulcíssimos como chocolate branco, mesmo quando ia respirar fundo e suspirar. Encho o peito daquele gás-fluido de outras paragens que ali foi ter vindo não sei de onde. Os alvéolos afogam-se imediatamente, como quando um náufrago inspira, desesperado, uma golfada de água salgada!
A minha hemoglobina suga imediatamente cada átomo daquela mistura de estranhos elementos que nunca se conseguiram isolar laboratorialmente, e leva-a rapidamente ao coração. Tento expirar, mas é em vão. Sinto-me tépido, mas envolvido em suor nervoso, gelado, que evapora rapidamente. Tenho sensação de pele queimada. Todo eu sou formigueiros. Tenho febre, tenho dores no corpo. Estou inflamado! E agora já estou bem e tudo isto demorou apenas meio minuto. O coração bate-me descompassado pela descarga adrenérgica. Não consigo estar quieto. Calma... onde estou? Expirei...
*

É estranho como o sol faz das suas. Se há cupido querubim, é ele, porque se decide a iluminar, a indicar, com um simples raio dourado, pessoas nas situações mais inesperadas, incómodas, inoportunas, injustas, impossíveis! Como se quisesse martelar nas peças do puzzle para que os entalhes... fit! Não é o encaixe induzido, é o encaixe forçado! Mas as peças do tetris não se compadecem, e continuam a cair. Amanha-te! E fica-se a rir, o querubim.
*

Danço agora na corda de um violino, embalado em tons docemente cortantes, mergulhado numa voz tão forte e tão frágil, choro de bebé real camuflado de imitação. Um pingo do mel que não querias derramar escorre pela minha corda bamba, desmielinizada, abafando as vibrações do meu pequenino mundo de rocha metamórfica, solidificado tão só recentemente, onde mal se vislumbra, já perigosamente longe, um esboço de calçada de marfim; levas-me para o outro lado do oceano, semeando em mim sonhos que não julgava possíveis de germinar.
No quartzo, feldspato e mica do meu planeta árido, agora visível pela desconstrução da minha tela vital, estival, virtual, tentam irromper raízes de um colossal embondeiro principesco, que, privado de alimento, sucumbirá, vítima de autofagia.

Sei que assim é... sei-o tão bem! Mas sonho com esse embondeiro já grande, cheio de pássaros, a dar-nos apoio, sombra, suporte, do alto dos seus anos que viveríamos. E mordo os nós dos dedos com força porque também sei que entristeço porque autorizei a memória de uma árvore que nunca será, ao negligenciar o que uma semente poderia vir a ser.

E da minha ameia, da minha torre, da minha corda bamba de violino chorão, estou suado, amestrado, retido pelo teu olhar aí em baixo, de coração sem diástoles, respirando mais depressa do que devia e mais devagar do que quero, em busca daquele gás-fluido que já me viciou mas que não consigo encontrar; não sei quem és, porque não sei ainda quem sou...

Tenho medo. Quero permitir-me voltar à minha calçada marfinada, tocar xilofone em cada pedra com a minha bengala... esperar que o meu planeta granítico seja primeiro colonizado por líquenes, musgos, pequenos cogumelos... e quando a rocha mãe estiver quebrada e tiver dado origem a solo fértil, talvez um embondeiro.
Caminho, pé ante pé, cuidadosamente, em caminhos calcetados. Respiro profunda e serenamente a paz dos justos. Olho por cima do ombro e vejo o musgo verde tomar conta das brechas por entre as pedras da calçada...


18 de maio de 2005

Crónica do amor incondicional - parte 1


Sobrevoo em zigue-zague rochosos campos verdejantes de primavera. O pequeno avião desvia-se com perícia do esbatido nevoeiro marinho de algodão doce e dos picos cortantes dos montes e das escarpas da orla costeira; saboreio a fragrância do oceano gelado e os salpicos salgados de espuma na cara, borrifados pelo vento que assobia nas asas, mastigado pela hélice do motor, que trabalha em silêncio absoluto...
Numa relação de eterno amor intempestivo, as vagas açoitam as penedas lá em baixo, e ciclicamente lambem com volúpia as intercaladas línguas planas de areia grossa, que sorvem quase imediatamente aquela espuma de saliva salgada... tssssssssssssssss...

Do lado de fora do cockpit, um enorme holograma lilás da minha irmã vai falando comigo e dando-me instruções, com um mapa na mão.
- Tens que ir mais para sudeste! Aquela horta ali à frente, vês? Depois há um cotovelo na costa e viras mais à esquerda...
- Ok. Cheira a mar! Notas?
- Concentra-te! Nem te disse onde é que vais aterrar! Nem te lembras disso! Será possível? Tótó!
Deito-lhe a língua de fora e esbugalho os olhos. Puxo e empurro os comandos do avião, subo e desço vertiginosamente; corto-me a mim mesmo o fôlego, fecho os olhos, como uma criança num baloiço, alto, cada vez mais alto, baixo, cada vez mais baixo, viciada na sensação de perigo na barriga. Depois sento-me melhor na cadeira de piloto e tento respirar mais devagar. Tento acariciar as borboletas do meu estômago para as acalmar.

Aterro numa fita de terra batida enlameada, ladeada de trevo e campaínhas cobertas de orvalho gelado. Vou caminhando em direcção à margem de um rio que se junta ao mar, enquanto o mato rasteirinho me ensopa o couro das botas. Num bote, está um homem de cabelo branco; enquanto me aproximo, ele vai arrumando as tralhas da pesca sem olhar para mim. Chego-lhe à beira.

- O mar está meio bravo e vamos demorar a atravessar. Teve dificuldade em chegar? Sua avó está com as dores do reumático, é bem capaz que chova.
- Vim bem! Uns nevoeirozitos mas nada de especial. Pintou o barco outra vez?
- Vista esse oleado aí, ou ficará encharcado com esta névoa!

O velho remava com perícia e guiava o barco, sulcando aquele braço de mar que esmurrava a foz do rio, inquieto de milhares de pegadas que apareciam e desapareciam quase instantaneamente, pisadas pelo vento. Também eu me sinto agora inquieto, encostado à popa do bote, de mão esquerda medrosa crispada na borda do barco, enquanto os dedos vão ficando brancos de gelo, beijados pelas ondas mais afoitas.
*

14 de maio de 2005

Plasmodium (não) vivax ®




Somos feitos de C, N, O.
Somos feitos do asfalto que percorremos, dos traços descontínuos que desaparecem, efémeros como flashes.

Somos feitos dos semáforos vermelhos e stops que não respeitamos, dos carros que ultrapassamos, dos velhinhos que ajudamos a atravessar as ruas. E dos carros que nos atropelam.

Somos feitos do ar que inspiramos, e não do que expiramos. Não somos feitos do cabelo que cortámos ou que nos caiu...
A água que vertemos ainda há de fazer parte de nós de novo.

Teremos sempre onde cair mortos e seremos sempre iguais a nós próprios; desejaremos sempre aos outros o dobro daquilo que eles nos desejam. Haverá sempre expressões arrogantes, verdades de La Palisse e ditos vingativos mascarados de bom samaritanismo.

Somos feitos dos amigos e amores que se foram embora, e seremos feitos dos que ficarem quando morrermos.
Somos feitos das dores que sentimos, dos sabores que experimentámos, dos odores que cheirámos e das cores e formas que pintámos.

Não somos feitos do que poderíamos ter feito. Somos feitos dos louros das acções para as quais tivemos força, dos saltos de fé que ousámos arriscar, do orgulho dos erros que tivemos a coragem de cometer. Em nós não há lugar para o arrependimento do que nunca fomos.

Somos feitos das lições que aprendemos, das cicatrizes de chicote que temos nas costas; mas também dos músculos que desenvolvemos e dos anticorpos que criámos.

Somos feitos de quem nos amou, de quem amamos e amámos. Somos feitos de quem nos magoou e nunca existiu. Somos feitos das paixões do presente.
Somos feitos de ganidos, latidos, ladrares e rosnares. Somos feitos dos mesmos órgãos e sistemas de órgãos que todos os dias envenenamos mais um pouco. E somos feitos da necessidade de excretar esse veneno, picando-nos uns aos outros.

Somos feitos do queijo e da ratoeira. Do queijo e da faca nas nossas mãos. Das facas de dois gumes que no-las cortam.
Somos feitos do fascismo, do comunismo, do socialismo e do neofascismo - tudo é uma questão de referencial einsteiniano.

Somos feitos de heroísmo cobarde; somos feitos de espiritualismo materialista; somos a espada e a parede.
Somos feitos de narcisismo falso-modesto.
Somos feitos de resignação megalómana. Somos lobos na pele de cordeiros, e nos tempos livres somos cordeiros na pele de lobos.
Somos minimalistas grandiloquentes.

Somos feitos de oscilação uniformemente variada.
Mas cada um de nós é feito das opções que toma.