14 de julho de 2009

Sem título

Cheguei ao Centro de Saúde um pouco antes da hora combinada, talvez pela primeira vez desde que lá estou. Tinha ficado acordado que iria acompanhar durante um dia o enfermeiro nas visitas aos domicílios.
Entrámos num AX velhíssimo, com vários sinais de degradação (não tanto no aspecto como na mecânica), e lá fui eu no banco de trás, enquanto uma empregada do centro conduzia o carro de forma calculada para não falhar nenhum buraco.
Visitámos várias pessoas em casa, e observei que a tal empregada se tinha especializado a ajudar o enfermeiro a preparar o material e a fazer os pensos aos doentes. Faziam uma dupla muito eficiente, e, de resto, quase todas as pessoas que visitámos já os conheciam há bastante tempo.
Foi bom ver o quão agradecidas as pessoas lhes ficavam. Normalmente o enfermeiro apresentava-me a elas, e no fim agradeciam-me imenso por ter ido. Um agradecimento sincero, e eu fiquei várias vezes sem jeito por não ter feito absolutamente mais nada do que apenas ficar a observar como se faziam os pensos, e conversar meia dúzia de minutos com elas.
Vi algumas desgraças naquelas casas. Acho que a maior parte de nós não tem a noção do ponto a que podem chegar as feridas das pessoas acamadas. Já tinha visto coisas muito graves anteriormente, mas como já não contactava há muito tempo com este tipo de situações, não consegui evitar ficar esgotado - não sei muito bem sequer dizer a que níveis - com este dia, que no fundo só durou até às 14h.
Às vezes surpreendo-me com a capacidade que algumas pessoas têm de se manter vivas, apesar de paralizadas numa cama, sem comunicar, e em que apenas vislumbramos no olhar um brilho de consciência, de quando em vez. Pessoas já com muita idade que têm escaras brutalmente grandes que nunca irão sarar, que passam anos nestas situações, acamadas... e continuam vivas.
E no entanto o tal enfermeiro visita essas pessoas, e nem por um momento lhe vi enfado nos gestos nem nas atitudes. Apenas se queixou das costas. Enquanto mudava os pensos e falava com os doentes, só lhe vi cuidado e carinho. Ir aos domicílios das pessoas é uma tarefa árdua sob várias perspectivas. Fiquei a admirá-lo porque acho que não era capaz de o fazer.
Enquanto saíamos de uma dessas casas e nos dirigiamos ao carro, não pude evitar comentar que achava que não devia ser possível as pessoas sobreviverem em determinadas condições-limite. Os meus dois companheiros concordaram.
*
Passada meia hora, recebo um telefonema do amigo Chico a comunicar-me que o Petrovic tinha morrido num acidente de mota. Esse rapaz era pouco mais velho do que eu, e era do grupinho de pessoas que jogavam à bola comigo seja em que campo fosse, seja com que clima fosse - muitas vezes na lama, às 8 da manhã de sábado. Devia ter uns 10 anos quando o conheci.
Ainda por cima era um gajo porreiro. E ainda por cima era um gajo que nunca vi chateado - e o pessoal todo chateava-se pelo menos uma vez na vida a jogar à bola, ou por causa de uma canelada, ou por causa de não passar a bola...
Claro que os anos passaram e raramente o via, agora. Mas nas festinhas de Queijas nem era preciso combinar: encontrava-o junto com o pessoal do costume junto à barraquinha das minis, e contava-se outra vez as mesmas histórias antigas. Nunca encontrei o Petrovic sem que ele me fizesse rir à gargalhada. Até a maneira que o gajo tinha de rir fazia rir as outras pessoas. Vivia a vida em grande.
Como disse um amigo em comum há bocado no velório, só tenho boas recordações dele. E acrescento: dele não tenho sequer nenhuma recordação assim-assim.

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