Atravessei o túnel e dirigi-me lentamente para a luz, vestido com o meu melhor fato de toureiro. Debaixo do braço esquerdo, levava dobrada uma bela capa vermelha - antiga, mas nunca antes usada - que escondia um par de ferros curtos, pois é sabido o que se diz do homem prevenido.À chegada à arena, já sobejamente conhecida de outras lides, olhei a toda a volta para as bancadas completamente vazias de espectadores. Um sol escaldante derretia a serradura no solo, e o cheiro taurino mesclava-se com o da madeira madeira queimada antes de invadir a atmosfera.
Sabia o que me esperava. O que ia enfrentar era um animal que tinha visto nascer. Tinha brincado com ele e crescido com ele, desde que era um pequeno bezerro ao qual dei leite por biberons, até se tornar um viçoso novilho com força demais para que fosse capaz de lhe torcer a cabeça à Ben-Hur com a força dos meus braços.
Foi então que nos afastaram um do outro. Disseram-me que ele tinha de aprender a ser um touro bravio, e puseram-no a pastar na pradaria, onde podia vislumbrá-lo cá do fundo, encostado à cerca, e proibido de me aproximar.
Anos passaram, fazendo de mim um toureiro experimentado e reconhecido em várias praças por esse Ribatejo fora. A minha alcunha desde há muito que tinha passado a ser "O Galifão dos Pionéses", pelo meu costume de marcar num mapa as incontáveis touradas vitoriosas em que tinha participado.Tinha tentado a internacionalização junto das praças de nuestros hermanos, mas as coisas não correram como o esperado. Havia há muito o mito de que os touros eram lá drogados e deixados nas arenas para o abate, para facilitar as coisas, mas eu nunca gostei de coisas fáceis, e muito menos das que são facilitadas para mim.
Junto do meu círculo de amigos, contava-se e recontava-se vezes a fio aquela vez em que o meu amigo novilho me tinha colhido e deixado a cuspir bocados de palha do chão do estábulo. Também eu repeti vezes sem conta a mesma resposta: foi a única vez que um animal me deitou ao chão!
Ali estava eu, com o nervosinho miúdo do reencontro bem escondido pelo meu couro calejado dos anos nas lides. Os ombros bem afastados, confiantes. A caixa torácica bem aberta, destemida. As pernas cravadas como pilares de betão, no chão da arena. A respiração calma inspirava humidade e arrojo.
Subitamente ouço o toque de uma corneta: tu tururu!... tururu tu-tu tururu! e recebo um embate poderosíssimo num flanco.Nem soube o que me atingiu. Fico no chão, combalido, com um zunido nos ouvidos. A custo, consigo levantar um pouco a cabeça do chão. Bocados de serradura invadem-me os olhos, as narinas, os ouvidos e a boca. E não consigo ver mais que meio palmo, envolto que estou por uma enorme nuvem de poeira.
Ponho-me de joelhos e tacteio à minha volta, à procura da capa e dos ferros. Sem êxito.Quando me sacudo, consigo finalmente ouvir qualquer coisa que vai crescendo à medida que o zunido se torna menos intenso.A nuvem de pó dissolve-se de repente no ar, e vejo a toda a volta as bancadas cheias de gente agitada, animada por uma qualquer festa que não conseguia ainda saber qual era.
O meu olhar volta ao nível da arena, enquanto continuo a tentar levantar-me e recompôr as ideias. Ponho-me de pé, ainda confuso, e olho em frente.
Lá estava ele, ao fundo, altivo, junto da madeira com um alvo pintado, recebendo vivas da audiência, inundado de rosas atiradas pelos espectadores eufóricos, fazendo vénias com a cabeça. Sorria. Pleno de sobranceria.
De repente vira-se para mim, enquanto a multidão se cala, aterrada. Coça a arena com uma das patas dianteiras, enquanto se prepara para um novo ataque. Desarmado, só tive tempo de evitar o embate brutal desviando-me para o lado, mas a cauda em chicote acerta-me em cheio na cara e inunda-me os olhos de lágrimas.
O povo grita e diz olé!, rebentando em gargalhadas.
Por entre o olhar enevoado, vislumbro-o novamente lá ao fundo da arena, recebendo mais mimos da plateia. Penso no que se tornou. Um belo animal, grande porte, talvez o maior que já vi. Com novas manhas. Fugidio, muito mais veloz. Assustador até para mim, O Galifão dos Pionéses.
Ali estava eu, combalido, com o meu melhor fato rasgado, sem a minha capa, jogado por mim mesmo à fera."Êêêmmm tórôôôooo...!" ensaio, de voz fininha. Novo rebentamento de gargalhadas pela multidão. Ele nem me ouve.
"Ê-Ê-Ê-ÊMMM TÓRÔÔÔÔÔ!!!!" - grito mais alto, enquanto avanço tropegamente - " JÁ NÃO ME RECONHECES?".
Mal se tinha virado o bicho, e já me tinha atingido novamente de forma brutal, ainda mais brutal do que a primeira.
Só consigo ver o chão da arena e a primeira fila da multidão lá ao fundo, tudo vermelho, como se tivesse a espreitar por um papel de floco de neve.A multidão rompe em festejos, num enorme gáudio, mais barulhento do que o zunido que me embebeda os ouvidos.Tento levantar o pescoço, mas logo desisto. De repente, vejo tudo escuro. Ainda sinto o bafo do bicho ao pé de mim e um restolhar de patas no solo, antes de o zunido se tornar insuportável.
Só consigo ver o chão da arena e a primeira fila da multidão lá ao fundo, tudo vermelho, como se tivesse a espreitar por um papel de floco de neve.A multidão rompe em festejos, num enorme gáudio, mais barulhento do que o zunido que me embebeda os ouvidos.Tento levantar o pescoço, mas logo desisto. De repente, vejo tudo escuro. Ainda sinto o bafo do bicho ao pé de mim e um restolhar de patas no solo, antes de o zunido se tornar insuportável.
Desligo.
*
"- Veio em todos os jornais! 'Tou-ta dizer! É verdade!
- Não pode ser... O Galifão?
- Ele mesmo! Depois disto não sei se continua. Foi completamente atropelado! Entrou na arena armado ao pingarelho, olha aqui esta foto: a caixa toda aberta!
- Eix... mas o gajo era o melhor, pá...
- Pois era, mas quem o toureou foi o touro. Diz aqui que depois de o deixar por terra foi buscar a capa e o tapou com ela, deixou-lhe uma rosa em cima e escreveu com a pata no chão um curto epitáfio!
- Isso é mentira de certeza! És um otário, acreditas em tudo...
- Bem, pelo menos estão aqui fotos do Galifão com a capa por cima ...
- Isso é montagem, pá...
- E ouvi dizer que o gajo está internado algures aqui no hospital.".
- Não pode ser... O Galifão?
- Ele mesmo! Depois disto não sei se continua. Foi completamente atropelado! Entrou na arena armado ao pingarelho, olha aqui esta foto: a caixa toda aberta!
- Eix... mas o gajo era o melhor, pá...
- Pois era, mas quem o toureou foi o touro. Diz aqui que depois de o deixar por terra foi buscar a capa e o tapou com ela, deixou-lhe uma rosa em cima e escreveu com a pata no chão um curto epitáfio!
- Isso é mentira de certeza! És um otário, acreditas em tudo...
- Bem, pelo menos estão aqui fotos do Galifão com a capa por cima ...
- Isso é montagem, pá...
- E ouvi dizer que o gajo está internado algures aqui no hospital.".
*
Acordo enquanto ouço a conversa, e ao abrir os olhos vejo um molho de tubos a sair-me por todos os orifícios do corpo. Com o olhar desfocado, olho para o cobertor, para o resguardo, para as cortinas... e consigo ler repetitivamente a sigla do hospital. Parece-me cada vez mais um padrão de pequeninos touros pretos, muitos, cada vez mais, e todos eles a rir-se de mim.
Foi nessa altura que decidi que nunca mais iria ser toureado.
Foi nessa altura que decidi que nunca mais iria ser toureado.
Ia abraçar outro tipo de lides.
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