20 de janeiro de 2009

Idiossincrasia 02

"O Hospital de Santa Maria está em lenta necrose" - aspecto do tecto da casa de banho de uma enfermaria"
Uma das maravilhas da natureza, segundo as teorias evolucionistas, foi a forma como, de um simples organismo unicelular, a vida avançou para seres complexos, com um enorme número de células, tecidos especializados em funções, até chegarmos à tremenda diversidade que (ainda) podemos observar no planeta.
Claro está que estas células terão aprendido a cooperar, e a "perceber" que, funcionando juntas, podiam aumentar a sua chance de sobrevivência, reprodução, e longevidade (individual e específica). Na verdade elas não perceberam nada. Simplesmente algumas delas fizeram-no por acaso, e foram seleccionadas para passar da fase de grupos, por assim dizer.

Quando tive Biologia no 12º ano, uma das coisas mais interessantes que aprendi (e que ainda hoje recordo) foi a teoria que explica a razão pela qual os insectos não terão atingido tamanhos enormes, tal como o conseguiram mais tarde os mamíferos. É um facto que este grupo de animais domina desde há muito o mundo, em termos de número global, e também de número de espécies, colonizando todos os ambientes possíveis. Então, por que razão não teriam conseguido evoluir no sentido de atingir grandes dimensões?A resposta está no sistema circulatório e respiratório comparativamente simples destes seres. Segundo julgamos saber, o facto de disporem apenas de um conjunto de vasos rudimentares, e de um esboço de mecanismo de bomba, faz com que os nutrientes e o oxigénio obtidos a partir do exterior apenas possam ser transportados a velocidades relativamente baixas, e apenas por distâncias reduzidas. Como sabemos, as células todas dependem destes suprimentos. É fácil compreender porque é que, então, os insectos não conseguiram crescer mais, e porque é que outros animais, como os cordados (répteis, mamíferos, etc) conseguiram ficar gigantescos em alguns casos. No entanto, não se deixem enganar. O tamanho não importa (does it?). Os dinossauros e alguns dos animais mais brutais de sempre já não habitam o nosso planeta. Quer-me parecer que não terá sido só por causa do calhau que terá caído na terra.
Pensem no caso dos tumores, particularmente os malignos. Os tumores são uma recapitulação acelerada das teorias evolucionistas. As suas células não cooperam verdadeiramente umas com as outras, porque, pelo menos durante uma boa parte do período inicial do seu desenvolvimento, descendem de um único clone celular, e portanto são todas irmãzinhas umas das outras, sem especializações umas em relações às outras.
São é um pouco endiabradas, porque só querem é multiplicar-se, não morrem à taxa habitual das outras "normais", e ainda por cima desenvolvem mecanismos para evitar o sistema imunitário da pessoa (ou do animal) que serve de hospedeiro. Para além disso, induzem também a formação de novos vasos, de forma anárquica, para o próprio tumor. Ou seja, para crescer, precisam de um suprimento aumentado de sangue que lhes faça a comidinha e o oxigénio, e que lhes leve o saco do lixo.
As coisas correm mal (para o tumor) quando o crescimento é desproporcional ao suprimento. Aliás, tal acontece com qualquer tecido. Ou porque as necessidades aumentaram, ou porque o débito sanguíneo diminuiu. Então, o tumor entra em necrose, e parte das células morre.
Já vi várias vezes o que acontece a alguns doentes com insuficiências arteriais dos vasos dos membros inferiores. A necrose não é bonita. Não cheira bem. E muitas vezes conduz a amputações ...
*

A questão principal é que, para qualquer organismo funcionar, é necessário que as células possam comunicar entre si em tempo útil, e desempenhar as suas funções adequadamente e em harmonia.
Estou há ainda não 3 semanas no hospital de santa maria, e já percebi que é um organismo gigantesco. Mesmo as pessoas que trabalham lá há anos não conhecem o hospital todo, e não sabem dar indicações a quem delas possa precisar.Mas a impossibilidade de dar indicações não é o maior problema. É que os serviços, seja o de medicina, o de cirurgia, os recursos humanos, a lavandaria, etc... precisam de comunicar umas com as outras para tudo funcionar a tempo.
Percebi que existem alguns pequenos factores que fazem com que o trabalho de cada pessoa dali, que poderia ser feito em muito menos tempo, gastanto muito menos energia e paciência
(e dinheiro, porque não dizê-lo, já que as administrações hospitalares tanto falam nisso), acabe por ocupar um horário inteiro, e até mais do que isso.
Um desses factores é o facto de o hospital, por si só, ser muito grande. Qualquer deslocação ali demora sempre algum tempo, os corredores são grandes, muitas vezes atulhados com pessoas a tentar fazer o seu trabalho, com caixas, caixotes, carros de comida, macas, etc. Mas a coisa fica muitíssimo pior quando nos damos conta de que os elevadores não funcionam. Já não basta o tempo que se perde a perceber qual é o elevador certo para nos levar ao sítio certo, mas também
há o grande problema de o elevador não parar no nosso piso porque não lhe apeteceu. Para cúmulo, às vezes a meio do caminho, algum funcionário quer transportar uma maca com um doente, e quando as portas abrem, simplesmente diz: SAIR!, com cara de poucos amigos. Às vezes até é um cadáver que está a ser transportado. E lá temos todos que sair num piso que não queremos.
E depois são 9 pisos. A espera é penosa, e portanto quem pode opta por ir a pé pelas escadas. Mais gasto de tempo.
São 22 escadas por piso. Fora a energia que se gasta. Para tornar engraçado o percurso, meteram lá uns gajos com uns martelos e uns pincéis, em cima dos andaimes, de maneira que temos de nos esgueirar nas escadas para não sujar as batas, ou para evitar aos senhores um acidente de trabalho - e mais trabalho para nós, no fundo. Não estou a brincar. É um risco real. É tão provável que aconteça dadas as condições, que até me admira que nenhum tipo que venha a subir as escadas com sono não tenha ainda dado ali um encontrão.

Não estou a queixar-me, já que até faço algum exercício assim. Mas simplesmente não me parece eficaz. Alguém está à espera para ter alta e ir embora do hospital, e sou eu que estou a demorar isso, porque sou eu que levo o papel na mão.
Os doentes precisam de ser transportados para fazer exames, e demoram muito mais tempo por causa disso. Tudo demora muito mais tempo por causa disso.

Outro factor importante é que, nas enfermarias, os recursos logísticos não estão nunca imediatamente disponíveis, havendo sempre qualquer coisa que falha. Sim, o doente está pronto para ir para casa, sim, já cá estão os bombeiros para transportarem o doente. O problema é que a impressora não funciona, e portanto não se pode imprimir a nota de alta.
Mais: normalmente as impressoras estão longe do computador de onde foi mandada a ordem de imprimir. Chegamos à impressora, não está lá nada impresso. Humm... desta vez falta papel.
Onde está o papel, Sra. Enfermeira? ... Humm... Sra. Enfermeira?, Ai! Não sei... Doutor! Procure!
Claro que sabe. Está numa gaveta ali perto e toda a gente sabe onde está. Menos eu, que estou ali há pouco tempo e tenho que abrir as gavetas todas para procurar.
Isto leva-nos a outro problema. A capacidade de comunicação e a falta de paciência, de entreajuda e de educação de boa parte das pessoas que ali trabalham. Também aqui se perde muito tempo... muito tempo precioso. É por isso que me rebolo a rir quando em algumas reuniões de serviço me falam em trabalho de equipa, e a importância de uma equipa multidisciplinar bla bla bla Bull shit!!! Acho que nem me passavam um bocado de fita cola para a mão se um doente estivesse a sangrar de uma carótida!

Talvez este tipo de aprendizagem seja como quando nos mandavam ir ao dicionário quando eramos pequenos e não sabíamos o que queria dizer alguma palavra. Não interessa que o doente fique mais 3 horas à espera, o que importa é que tu aprendas - PARA SEMPRE - onde está o papel para pôr na impressora.Nem é preciso referir que o papel das impressoras devia ser como o papel higiénico nas nossas casas de banho. Quem acaba, mete um rolo novo ...

Na semana passada, levei 4 canetas diferentes para o serviço. Pediram-mas todas emprestadas (todas as pessoas eram médicas, by the way), nenhuma foi devolvida. Quando toda a gente foi almoçar e me apareceu um doente que precisava de tirar sangue com urgência para análises, eu tive de preencher algumas requisições à mão. E caneta? Não havia. Procurei pela enfermaria inteira, e não descobri uma única caneta. É inacreditável ... em minha casa dou um pontapé num móvel e caem 3 canetas. Eu, o baldas, aquele que nunca tem material, aquele que pede mas devolve, teve que ir pedir à única pessoa que ali estava na altura, que era uma enfermeira, para, por favor, pretty please with sugar on top, se dignasse a emprestar-me a sua pena literária durante 2 minutos, que era para eu usar mesmo à sua frente. Ela olhou para mim, rosnou-me, e emprestou-me a caneta muito a contragosto.
Não critico. Aconteceu-me o mesmo, ficar sem canetas. Mas até o mau ambiente e a falta de entreajuda têm custos, que se podem medir em índices de satisfação no trabalho, em produtividade, e na eficiência com que se tratam os doentes (razão entre o benefício e o dinheiro gasto).

Podia falar muitíssimo mais de problemas logísticos, porque a dificuldade está na escolha. No entanto não o farei, porque não vos quero maçar, e porque a esta altura devem estar a pensar qualquer coisa como "Olha, este tipo deve achar que está a contar alguma coisa única no mundo". Não tenho essa pretensão. Estou apenas a tentar explicar que uma coisa grande é feita sempre de coisas mais pequeninas, e que os pequenos defeitos dessas coisas pequeninas geram defeitos
gigantescos na coisa grande. É como um efeito-borboleta...
Como as coisas funcionam assim, por dependermos uns dos outros, tudo funciona mais lentamente, e as pessoas perdem a paciência e viram-se para si próprias e para o que têm de fazer, tornando-se o mais independentes que podem, por um lado, e jogando a maior quantidade de trabalho que podem para cima dos outros, por outro.
A má disposição impera. Eu falei das enfermeiras, mas não me interpretem mal. É igual para qualquer profissão. E eu compreendo, porque eu próprio chego ali depois de uma hora de trânsito, e vejo que o que faço, que espremendo bem espremidinho, se fazia em 2 horas, se faz na realidade em 6 ou 7 horas. Tudo por pequenas coisas. Por isso é que eu compreendo a maneira como as pessoas se tratam (ou não se tratam) umas às outras ali. Estão insatisfeitas. Estão em anóxia. São tecidos isquémicos. Estão a sufocar e portanto debatem-se umas com as outras.

Se eu sempre pensei que é preciso estar-se um pouco morto para se trabalhar num hospital, sendo ou não médico, agora tenho a certeza. Isto porque, a meu ver, o hospital reúne o pior de dois mundos: não só é o sítio onde as pessoas estão doentes, tristes, e morrem, mas é também o sítio que acumula os males presentes em tantas e tantas empresas e organizações do país, com destaque para a função pública.

Eu reconheço que não conheço a realidade da saúde lá fora, e envergonho-me por estar a falar nisto sem conhecimento global de causa. Mas há coisas que não me fazem sentido ...
Não é que eu seja brutalmente produtivo por natureza, workoholic, porque não sou. Tenho pouca energia, sou um gajo cansado e tal ... e que precisa mesmo de motivação para fazer as coisas. Quando a tenho, então supero-me. Mas de cada vez que tento fazer uma coisa correctamente e bem - seja ela qual for - esbarro sempre no sistema. E aí, vou perdendo a minha boa vontade, o meu sorriso, a minha simpatia, a minha boa educação, a forma calorosa como falo com os meus iguais.

O hospital de santa maria é tão grande, mas tão grande, que está em necrose. Não é que as coisas não se vão fazendo, mas tudo podia ser muito melhor, tanto para os doentes como para as pessoas que lá trabalham.

Após esta exposição chatíssima, a minha pergunta é: será que vale a pena concentrar grande parte dos hospitais de Lisboa no novíssimo, e avançadíssimo, etc íssimo, Hospital de todos os Santos?

4 comentários:

  1. Não é por ser grande... É por ser grande e português! Nos poucos meses que estive em Paris a trabalhar conheci a realidade de 2 hospitais comparáveis a Sta Maria em tamanho, onde tudo funcionava incrivelmente bem. Excepto a simpatia das pessoas, isso não funcionava muito bem. Mas tal como toda a gente sabe que a arrogância é uma característica de alguns/muitos franceses, também se sabe que a desorganização e a chico-espertice cabem aos portugueses. As coisas não são feitas da maneira que é suposto. As coisas são feitas da maneira que der menos trabalho à pessoa que as tiver que fazer.. Isto multiplicado pelas milhentas pessoas que ali trabalham dá o resultado que se vê :P Força para a tua estadia lá, não deixes que aquilo te transforme! *

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  2. Pelo que entendi és um dos poucos sortudos (ou não!) que teve a felicidade (maybe not!) de ir trabalhar (ou estagiar) para o HSM! Resumindo dizes que esse grandioso hospital, é apenas no tamanho do edíficio. Quando sonhamos em tirar um curso na área da saúde (principalmente medicina) muitos de nós almejamos por exercer no HSM. O facto é que este hospital é extremamente desorganizado, e a existência de pessoas pouco cooperantes não ajuda à festa... É verdade que uma laranja boa não consegue converter 1000 laranjas podres... Infelizmente o contrário acontece... O único conselho que te posso dar é manteres os teus ideais que te levaram a tirar o curso, que acredito ser ajudar quem mais sofre. É óbvio que muitos srs. drs e enfs não irão com a tua cara. (muitas vezes é por inveja, porque eles mesmos já tiveram esses ideais e se deixaram corromper) Mas mantem-te no teu caminho! O que os outros dizem não importa. Acredita que não estás sozinho.
    Força! Bom trabalho!

    P.S. Vou acompanhar o teu blog para ver como andas no HSM.

    P.S. O facto do HSM ser grande tem outra vantagem para além do exercício físico. Ajuda a pessoa a não fumar tanto... Só o trabalho para sair do edíficio para dar uma passa...

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  3. Obrigado pelos comentários motivadores, lily e anónimo :)

    Apesar de tudo, há dias que correm melhor que outros. E não é que eu não seja uma laranja podre. De facto, ainda estou a tentar descobrir se sim ou não.
    Facto é que já me estou a sentir um bocado mais útil. Eu tenho é que me habituar a trabalhar e acordar cedo todos os dias. Eu sempre me senti mais produtivo à tarde, e agora não pode ser assim!

    "Hoje não vou" - todos os dias digo isto pelo menos 5 vezes para mim mesmo antes de me levantar. De manhã eu sou bom é na caminha!

    E sim, ajuda a não fumar. De facto, no hospital é raríssimo... e se tudo correr bem também vai sê-lo no resto do tempo :)

    Aproveito para deixar mais uma nota: pelo menos para já, em média, gosto das pessoas com quem trabalho. O mesmo não aconteceu na maior parte dos outros hospitais por onde passei. Portanto, se calhar passei uma ideia demasiado apocalíptica do HSM. Até conheci pessoal fixe lá!
    E sim, é bom poder ajudar as pessoas, e é bom quando corre bem. O problema é que, como tudo depende de tanta coisa e de tantas pessoas, o mérito (se é que se pode usar esta palavra neste contexto) fica tão diluído que não é muitas vezes que se fica com uma sensação inequívoca de realização.

    Curiosamente, é quando nos tornamos - numa dada situação - a única pessoa que quis dar-se ao trabalho de resolver um problema, quando toda a gente se quis ir embora ou não está presente, que fazemos a diferença. Infelizmente, isso significa não surfar a onda omnipresente do funcionalismo público, e portanto sair mais tarde, ter muito mais trabalho, e gastar muito mais energia. E, já agora, arranjar problemas, porque nunca vêm sós. De facto, tenho a impressão de que algumas coisas funcionam ali porque algumas pessoas se preocupam realmente com os doentinhos. Agora estou a ver as coisas de fora, não me estou a incluir ou excluir neste grupo.

    Talvez volte a falar deste assunto em breve, com exemplos práticos, embora não queira transformar o blog num panfleto reivindicativo.

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  4. Os meus antecdentes pessoais do HSM são vastíssimos e desde muto tenra idade. A minha irmã foi lá operada tinha eu 5 anos, sempre a acompanhei a consultas, também eu fui "rastreada" POR LÁ ENFIM...Umo coisa posso dizer, aquilo sempre me fez muita confusão, é escuro, tenebroso, frio. Quando criança, parecia-me um bairro daqueles dos filmes bronxicos. Montes de gente, tudo feio, a pessoa virava-se para qualquer lado e não vislumbrava nada que fosseaprazível ao olhar. Passados tantos anos, custa-me a aceitar que a situação esteja ainda pior e de facto está. Continuam a morrer em bardas no SU (a minha avó foi em coma para o HSJ porque nem soro! e isto numa diabética... ainda tive que ouvir a médica dizer bestialmente que "é um favor que me faz se a levar"), continua a arrogância em bardas, a desorganização em bardas... e não muda. Talvez porque esteja em necrose e seja mais fácil deixar cair porque outros interessem se "alevantam". O pior é que é a vida das pessoas que está em jogo e dessas 90% já não têm energia para dizer ou reclamar o que quer que seja.

    Beijos amigo e FORÇA,

    Isa;)

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