5 de setembro de 2007

Se te perderes em Lisboa...


Aquela tarde era uma página branca pronta a ser preenchida com uma tinta muito líquida, de uma caneta permanente que deslizasse, suave e freneticamente, desenhando movimentos que tragassem palavras completamente novas que contassem aqueles novos cheiros e cores. E aquela cidade seria um novo capítulo de um livro com tão poucas páginas já escritas; algumas, enrugadas de lágrimas; outras, riscadas de raiva; e outras ainda, amarrotadas de alegria.
Aquela tarde era de amarelo-torrado. A luz enchia o ar de pequenas partículas que caíam placidamente nas caras das pessoas. Espanhóis, brasileiros e outros estrangeiros passeavam calmamente pelas ruas do Bairro Alto. O rapaz da flauta lutava com o silêncio composto pelos passos anónimos e pelas pessoas que falavam de livros, compras, e coisas.
Cada linha do tecido daquele vestido lhe desenhava o corpo e libertava a alma de quem para ela olhava. Os seus passos, silenciosos, batiam o ritmo essencial da vida, do bater de um coração - nem demasiado molengão, nem demasiado
neurótico. É de crer que quem a observava poderia ter puxado do telemóvel, acedido às funções de cronómetro e calculadora, e medido este ritmo; contaria então 72 passos por minuto, o que daria o sedutor número de 1,2 passos por segundo. É de crer, mas ninguém o fez, pois não era preciso: os corações reconhecem o seu próprio ritmo sem fazer contas de cabeça, e rendem-se imediatamente à sintonia quando a encontram.
Nas ruas, nos cafés, nas esplanadas, as pessoas ficavam a vê-la passar. Os casais que por ela passavam em sentido oposto suspendiam os seus diálogos e miravam-na em algo mais do que um relance. Elas, para lhe tentarem copiar o estilo; eles, tentando com exagero mostrar que não repararam. Mas depois de uns metros, não eram poucos os que para trás olhavam por cima do ombro. "Julguei ver o fulano tal" - diziam às namoradas.
Aqueles passos de ternura desenhavam obras de arte no chão. E as suas pernas, troncos ingénuos com tão poucos anéis, sustentavam asas que estavam agora a aprender a voar. Ela era a árvore e o passarinho que nela pousa.
E as pessoas ficavam a ver. Quietas. Inquietas. Quedavam-se a olhar aquele jeito de mulher com cara de Vitinho. Vestido ondulante de rebeldia. Hálito de ananás e hortelã. E os passos, aqueles passos que lhes acompanham os corações naquele ritmo terno e viciante. Que cortam a respiração e fazem vibrar os tímpanos, e os martelos, e as bigornas, e os estribos, com a melodia que todos procuram pelas suas eternidades fora. É que há canções que não perduram nem depois de tocadas mil vezes, mas esta ficará imediatamente no ouvido após ser escutada pela primeira vez, no meio do ruidoso ambiente citadino, mesmo por ouvidos empedernidos por milhares de outras músicas passadas...

Tengo ganas de cantar
Una bonita canción
Que te haga comprender
Lo que hay en mi corazón

Una canción con dulzura
Que de ti hable y de mi
Diga que siente mi alma
Desde el día que te vi

Que tiki tiki tiki ti
Late así mi corazón

Es que estoy enamorado
De tu mirada preciosa
De tu risa y de tu boca
De tu cuerpo escultural

Que tiki tiki tiki ti
Late así mi corazón

Desde aquel divino día
En que yo te conocí
Y es por eso que la vida
No la suporto sin ti.
Passeava ela pelas ruas da nova cidade.
As fachadas dos prédios escondiam outros prédios mais altos por trás, e as estradas iam sempre dar a outras estradas. Tantas caras novas! E quantas direcções por explorar!
Vai formosa e segura, ou pelo menos assim pensam todos os que para ela olham, sem poder imaginar o nervosinho que lhe faz cócegas no estômago. "Nunca vou conseguir conhecer tudo isto!" - dirá ela para si - "Haverá em cada esquina um amigo? Quantos lobos daqui saltarão ao meu caminho?".
Mas não receia perder-se, porque alguém um dia lhe disse: "Se te perderes em Lisboa, desce. Hás de ir ter ao rio."

4 comentários:

  1. Este texto realmente explora o teu lado mais sentimental e apaixonado.
    Uma mulher descrita dessa forma complexa, como sendo uma simples e ao mesmo tempo tão especial e cativante peça de um Deus cheio de talento, não deixa ninguém indiferente.
    Todos gostaríamos de ser pessoas especiais, e algumas pessoas são sem fazer por querer.

    Actualização da pontuação:

    Lisboa 1 - 0 ...

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  2. Concordo com o Proder. Desenhaste bem esse ser feminino que transpira jovialidade e uma curiosidade audaz!:) Essa moça deve ser uma rica* peça, deve!









    *Atenção: o termo 'rica' aqui implementado não se deve ao poderio monetário da jovem em questão, mas sim da riqueza do seu "inner self"; achei importante esclarecer isto, num devaneio perfeitamente evitável.

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  3. Pena é o romantismo ser um misto no caso de muitas pessoas, um misto de sentimentos e um misto de pessoas...

    Amar só se ama uma vez, não se ama tudo ao mesmo tempo!

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  4. Confesso que não percebi muito bem o teu comentário, caro anónimo.

    Mas em termos genéricos, acho que não concordo muito com ele. Este texto fala mais de paixão e de química do que de amor.

    A minha concepção de amor invoca o tempo e a convivência como variáveis essenciais. Este texto fala apenas de... visões. De contactos efémeros. Fala de um "se", hipotético. As pessoas do texto ficam encantadas pela visão momentânea e inesperada de uma determinada rapariga. Não se pode falar de amor aqui, não é? Mas sim, tem romantismo à mistura, porque o romantismo também cai na alçada das paixões, e não apenas dos amores.

    Quanto ao não se poder amar tudo de uma vez, é discutível. O que é o tudo? Eu amo a vida e tudo o que ela encerra...

    Só se ama uma vez? Discordo energicamente. Amo a minha mãe, o meu pai, a minha irmã, a minha avó... amo a minha cadela. Amo alguns dos meus amigos...
    E amo-os a todos ao mesmo tempo! Até nestes "amores" há um romantismo subjacente.

    Mesmo se falarmos de pessoas do sexo oposto, também discordo. O amor, como sentimento, é heterogéneo. Pode-se amar de maneiras diferentes. É a minha opinião...
    O amor é um conceito dinâmico... dura para sempre, até se extinguir... seja por que motivo for. E depois poderá surgir outro, se tivermos muita sorte - as probabilidades jogam contra nós nisto, reconheço. E até há pessoas que ficam incapacitadas de amar.

    Acho curioso que um texto tão romântico, e ao mesmo tempo tão irreal, te leve a reflectir sobre romantismos e amores. Gostava realmente que me explicitasses melhor o que quiseste dizer :)
    Não sei quem és, nem desconfio. Mas diria que és uma rapariga, e que de certo modo ficaste incomodada com algo no texto!
    Corrige-me, se estiver enganado.

    Cumprimentos a ti, e ao resto do pessoal :)

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