Arripiado
Pressinto nas palavras o lúgubre silêncio de um mudo. Conseguisse eu falar, soubesse eu codificar de forma estruturada a causa desta insónia que fragiliza o meu sono. Há muito que não escrevia, julgo que perdi a capacidade de transpor para o papel qualquer ideia que ultrapasse o mero rigor teórico-científico. A fluidez com que outrora manuseava a caneta ou premia as teclas do computador esgotou-se em mim, comigo.
O vento sopra lá fora, ainda quente. Tudo dorme, pelo menos no raio mais próximo. A música acompanha-me nesta viagem pela escrita, serena, bela. Ouço a sonata ao luar de Beethoven e reconheço nela uma beleza tão antiga quanto a minha (nossa) existência. Na intimidade da noite, sigo as notas do piano. Calma, consentida pelo meu espírito agitado que corre apressado na incessante busca do silêncio melódico do campo, da maresiada brisa do Sul, do gélido Inverno a Norte. Ah, como anseio por um pouco de ar.
O vento sopra lá fora, ainda quente. Tudo dorme, pelo menos no raio mais próximo. A música acompanha-me nesta viagem pela escrita, serena, bela. Ouço a sonata ao luar de Beethoven e reconheço nela uma beleza tão antiga quanto a minha (nossa) existência. Na intimidade da noite, sigo as notas do piano. Calma, consentida pelo meu espírito agitado que corre apressado na incessante busca do silêncio melódico do campo, da maresiada brisa do Sul, do gélido Inverno a Norte. Ah, como anseio por um pouco de ar.
Percorro os quatro cantos do meu quarto, da cidade, e não encontro neles qualquer saída. O fumo infiltra-se no meu corpo insuflado e o espaço exíguo que me cerca esvai-se a cada segundo que passa. Apenas a guitarra compensa esta asfixia constante. Mesmo que soltas e sem nexo, encontro nas notas um caminho para o indizível. O som vibra nos meus dedos e eis que uma amálgama de emoções escoa pelos meus braços e depois por todo o meu corpo. Sinto-me leve e despojada, renunciando a tudo o que existe para além de mim e de um simples objecto que no mais subtil dos harpejos ganha vida.
Dizia Vergílio Ferreira em Estrela Polar que "Não se Ama uma Pedra. Amar é reconhecer nos outros um ser misterioso, e não um objecto (…) Aqueles que não amamos nem odiamos são nítidos como uma pedra. Sentir neles uma pessoa é começar a amar ou a odiá-los. Só amamos ou odiamos quem é vivo para nós." Apesar de verosímeis (sobretudo no contexto da obra), reconheço nestas palavras a minha mísera condição de amar um objecto, tão misterioso quanto mais o conheço e tão vivo quanto mais o amo.
Quando percorro as ruas ou viajo em transportes públicos procuro compensar a minha solidão tentando desvendar os pensamentos daqueles que, também solitários, se sentam ou passam por mim. Bem sei que não sou dotada de poderes premonitórios nem tão pouco telepáticos, contudo apraz-me tentar desvendar o seu nome, a sua vida, os sentimentos e pensamentos que vibram naquele preciso instante. Apesar de tais tentativas, a minha curiosidade e interesse cedo desvanecem. De repente, o intermitente e irritante mascar da pastilha elástica, já seca, sem sabor, o roer ruminante das unhas e os embrutecedores estalidos dos nós dos dedos transfiguram o semblante daqueles que me acompanham, de mim própria. O Homem torna-se num verdadeiro objecto, grotesco e insignificante como as pedras da calçada que pisamos ou como os pacotes de cigarros e os filtros que se amontoam pela orla dos passeios.
Tem sido particularmente difícil assumir uma existência embrutecida impregnada por um espírito eminentemente vivo. Se por um lado sinto uma vontade enorme de dar a vida em prol do bem estar dos meus companheiros de viagem, por outro sinto que é uma luta inglória e que apenas trará sofrimento e agruras. Sei que prevalecerá para sempre o objectivo primário de contrariar a morbilidade e sofrimento, contudo os riscos inerentes a essa missão fazem germinar um sentimento relutante. Será que vale a pena lutar e dar a vida pelo próximo? Poderá até nem valer, porém, com que direito ousamos julgar-nos superiores a ponto de centrarmos a existência somente na nossa vida e na daqueles que amamos?
Quando percorro as ruas ou viajo em transportes públicos procuro compensar a minha solidão tentando desvendar os pensamentos daqueles que, também solitários, se sentam ou passam por mim. Bem sei que não sou dotada de poderes premonitórios nem tão pouco telepáticos, contudo apraz-me tentar desvendar o seu nome, a sua vida, os sentimentos e pensamentos que vibram naquele preciso instante. Apesar de tais tentativas, a minha curiosidade e interesse cedo desvanecem. De repente, o intermitente e irritante mascar da pastilha elástica, já seca, sem sabor, o roer ruminante das unhas e os embrutecedores estalidos dos nós dos dedos transfiguram o semblante daqueles que me acompanham, de mim própria. O Homem torna-se num verdadeiro objecto, grotesco e insignificante como as pedras da calçada que pisamos ou como os pacotes de cigarros e os filtros que se amontoam pela orla dos passeios.
Tem sido particularmente difícil assumir uma existência embrutecida impregnada por um espírito eminentemente vivo. Se por um lado sinto uma vontade enorme de dar a vida em prol do bem estar dos meus companheiros de viagem, por outro sinto que é uma luta inglória e que apenas trará sofrimento e agruras. Sei que prevalecerá para sempre o objectivo primário de contrariar a morbilidade e sofrimento, contudo os riscos inerentes a essa missão fazem germinar um sentimento relutante. Será que vale a pena lutar e dar a vida pelo próximo? Poderá até nem valer, porém, com que direito ousamos julgar-nos superiores a ponto de centrarmos a existência somente na nossa vida e na daqueles que amamos?
Chegamos então a uma encruzilhada. Amamos nós os doentes, pessoas desconhecidas, pedras? Ou limitamo-nos a tratar de doenças somente porque amamos a vida ou porque no fundo da nossa essência existe algo desconhecido que nos impele a tal anseio pela cura e manutenção da espécie?
Ao longo dos anos de curso e de extensas horas de espera pelos corredores dos hospitais instalou-se em mim a dúvida – será que vale a pena? Embora seja uma questão pertinente, a resposta surge em mim como um verdadeiro axioma – vale! As constantes desilusões que sinto ao escutar as maledicências entre colegas que ecoam pelos corredores e pelos cubículos onde os “mestres” confortavelmente se instalam, a demissão do ensino por parte dos senhores doutores, a irresponsabilidade por parte de muitos doentes, a constante competição e luta pelo maior número de actos cirúrgicos, entre tantas outras contrariedades que me afligem e com as quais me vou deparar no futuro, não são suficientes para demover do espírito humano (sobretudo daqueles que escolheram a medicina para profissão) o instinto de sobrevivência em si impregnado desde as origens.
É desse instinto que surge a força que nos impele a amar um doente como uma pedra ou a sentir por uma pedra o amor que resplandece daqueles que amamos com toda a intensidade da vida. O caminho que já percorremos e o limiar ténue que nos separa do abismo que é a nossa condição de estagiários não é fácil. Penso que grande parte de nós já se sentiu (ou sentir-se-á) perdida nalgum ponto do seu percurso. Porém, quando a dúvida surge, há que apaziguar as interrogações e seguir de forma “irracional”, diria mesmo, puramente “animal”, esta dádiva enorme que é poder ajudar o próximo.
Este texto pode parecer despropositado e desconexo. Apesar disso, penso que vale a pena relembrar que ser médico vai além da indumentária estetoscópica. Ainda que as duvidas existenciais interpelem as nossas certezas, ainda que os problemas pessoais e quotidianos possam causar alguma instabilidade, é impreterível manter a frieza terna e complacente. Acima de qualquer amor, ódio ou instinto humano devemos ser realmente bons naquilo que fazemos, assumindo de forma consciente e honesta a inigualável e importante missão que nos foi concedida. Lutemos pela Vida.
"Sê"
Se não puderes ser um pinheiro, no topo de uma colina,
Sê um arbusto no vale mas sê
O melhor arbusto à margem do regato.
Sê um ramo, se não puderes ser uma árvore.
Se não puderes ser um ramo, sê um pouco de relva
E dá alegria a algum caminho.
Se não puderes ser uma estrada,
Sê apenas uma senda,
Se não puderes ser o Sol, sê uma estrela.
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso...
Mas sê o melhor no que quer que sejas.
Pablo Neruda
Pablo Neruda
Cara Isabel:
ResponderEliminarMais um texto em que vejo a tua extrema preocupação com o curso que estás (estamos) a tirar, e com a linha de vida que pretendes seguir.
Concordo com tudo o que escreveste. Isso não deve ser uma grande surpresa para ti, porque já falámos inúmeras vezes sobre isso.
Fico contente por, apesar de ver algum desapontamento nas tuas palavras, em especial para com as pessoas no seu todo, vejo também que continuas com a convicção de que vale a pena. Também eu a tenho e espero mantê-la até morrer.
E gosto tanto, mas tanto, desse poema...
O texto espelha a transição para outro nível, como se de um ponto de não retorno se tratasse. Dúvidas destas só as devemos colocar uma vez na vida. Porque vale sempre a pena para quem ama a verdadeira vertente da medicina: um espírito altruísta e humanista, que não olha exclusivamente a uma obrigação, mas sim a um belissimo dever de proporcionar qualidade de vida aos que dela mais necessitam.
ResponderEliminarNão olhes apenas para a componente negativa; essa é uma face da moeda. A outra também existe e é o néctar suculento da nossa profissão, aquele que nos faz esboçar um sorriso no meio de tanta decadência actual. O futuro espera por nós...e espera muito de nós - daí que o poema caiba que nem uma luva.
****:)