23 de setembro de 2007

Porquê colar, se se vai partir pelo mesmo sítio?



Queres que te traga alguma coisa? Um carioca de limão, uma água? Não? Está bem, bebo eu uma bica.
Ontem fui lá ao tal jantar com aqueles meus ex-colegas. Havias de ter visto a casa deles. Tantos quartos, e a menor das casas de banho é maior do que o meu quarto! Bem, é verdade que ainda precisa de uns acabamentos, mas a casa é fantástica. Que pena que não vieste ao jantar comigo.
Comemos um arroz de pato bastante bom, regado com um belo vinho tinto, e depois à sobremesa houve uns pedaços de melão, manga e ananás, que mergulhávamos numa espécie de fondue de chocolate. E houve torta de maçã.
Os meus amigos eram três casais. Todos eles com a minha idade. Felizes, mais ou menos arrumados na vida. Os pratos eram bonitos, e os talheres estavam muito bem colocados. Antes disso tinhamos estado a falar sobre a nossa vida, visto que não nos viamos há muito e era preciso pôr alguma conversa em dia. Fiquei a saber algumas coisas sobre os seus empregos, sobre os seus projectos... notei o entusiasmo deles a falar das suas coisas, do que pensam fazer e do que já conseguiram, mas também a sua preocupação com o futuro e com o que há de vir. Depois, bom, depois perguntaram-me quando é que acabo o curso, quando é que sou médico, que especialidade vou seguir... enfim, as perguntas do costume, e para as quais já tenho respostas mecanizadas, como uma mola na ponta da lingua.

Mas não utilizei a mola com eles, não. Eles são meus amigos, merecem que os factos sejam adornados com uma dose extra de entusiasmo, e outras tantas doses de humor. Afinal de contas eu faço rir as pessoas. É o que eu faço de melhor! Rir é o melhor remédio, não é o que dizem? Não te faço rir a ti? Pois faço!
De certeza que não queres nada? Está-me a fazer confusão, vê lá bem se queres um carioca de limão e não te lembras.
Bem, onde é que eu ia? Sim, o curso. Lá lhes disse o que ia acontecer nos próximos meses, sobre o curso, sobre os hospitais, o que achava, o que não achava, o que sentia, o que acontecia... todas aquelas coisas que evito falar, porque não tens muita paciência para médicos, não é, meu amorzinho? Pois claro que não, como eu te percebo! Também eu não tenho, muitas vezes! E eu só escolhi o melhor, claro. Durante um jantar que se queria alegre não ia falar dos meus filmes da TVI!

Bem, depois fomos então para a mesa, e como eramos 7, tive de ficar à cabeceira da mesa, e até tive direito a uma cadeira diferente e tudo, vê lá tu bem. Fiquei mais longe do arroz de pato e do fondue de chocolate, mas felizmente que os meus braços tudo abarcam; basta esticá-los e eles abraçam o mundo! Como te abraçam a ti, não é? Depois comentaram que tinham ouvido rumores que era desta vez que eu também vinha acompanhado. Não falei muito sobre isso. Disse apenas que também esperava vir acompanhado, mas que ainda não era desta. Depois falámos das férias, e de como apanhei berbigões e conquilhas contigo pela primeira vez na vida, sabes? E daquela carne de porco à alentejana, um pouco aldrabada, mas foi a primeira vez que esse marisco me soube tão bem! E fiquei a saber que tenho jeitinho para apanhar berbigão! É realmente giro, eu remexer na areia com os pés, com água pelo tornozelo, e mesmo sem saber o que está por baixo, sabemos que os bichos hão de vir à superfície. E depois tu estavas lá, pronta para os apanhar; fazemos uma bela equipa, não é?

O jantar foi óptimo e a cerveja e o vinho ajudaram-me a mandar umas piadas, mesmo quando não me apetecia! E também me consegui rir um bom bocado, contra todas as previsões. Eles lá me acharam muita piada, porque gostam mesmo de mim. É bom saber que os faço rir! Mais para o fim do jantar reparei que todos eles tinham alianças, que brilhavam douradamente e tilintavam nos copos de vinho meio cheios. Sim, meio cheios, porque eu sou um optimista, como sabes! E falaram das casas, e dos empréstimos que são um balúrdio, e das janelas que vão ter uns vidros especiais, e dos azulejos da cozinha, que vão ser verde-lima. E dos lavatórios em vidro, que isto de serem Valadares ou Roca já é um bocado démodé.
Deixa-te estar que eu vou-te buscar um carioca de café. De certeza? Pronto, está bem, não insisto mais. Mas bebo mais um café. Querias falar de qualquer coisa, não é? Deixa-me acabar de contar o jantar, que já conversamos sobre isso. A não ser que tenhas pressa!
Bom, depois, os rapazes foram para a cozinha beber cubas livres, isto depois de termos bebido um café temperado com a aguardente especial do anfitrião. Falámos de histórias antigas e de coisas que não devem ser faladas em frente às esposas. Tu compreendes, não é, meu amor? Há coisas que não se dizem às respectivas. Lá se riram muito das minhas histórias antigas, que apesar de repetidas têm sempre muita piada e aquecem o coração com uma nostalgia que ganha vida real. Mesmo assim tenho pena que não estivesses presente, porque ficarias a saber mais sobre mim, na altura em que eu era ainda mais engraçado e mais novo, como tu és agora. Depois falaram novamente de mulheres, e de como dizem que existem sete mulheres para cada homem. Depois alguém disse que eu já tinha gasto as minhas sete, já tinha roubado as sete do vizinho do lado, e já estava a roubar ainda outras sete a outro rapaz qualquer. Claro que toda a gente se riu de mim; afinal, ser-se mulherengo nunca há de deixar de estar na moda, e fica sempre bem no currículo de um rapaz. E como sou solteiro, acham que o que eu quero realmente é aventura. Mas claro que sabes que é um exagero, não é, amorzinho? Eu nem sei bem a tabuada do sete...
Entretanto esqueci-me de contar uma coisa: bebemos lá um vinho licoroso que estava uma delícia, antes do jantar! Era um vinho que ia mesmo bem com os cajus e com umas tapas com marmelada e queijos de diferentes tipos. E tu sabes como eu adoro queijo, não é? Precisei de dois copos daquele vinho para empurrar os aperitivos, não fosse ficar embuchado.
Mas sim, eles parecem estar bem lançados! Estão felizes com as companheiras e estão na idade disso mesmo. É a ordem natural das coisas. Só eu é que fiz tudo ao contrário, mas como um deles disse uma vez, a brincar e a sério ao mesmo tempo, "o joão não é exemplo para ninguém!", ao que se seguiu um coro de gargalhadas. Também não é tanto assim, sabes disso, não é?
Queres ir-te embora? Mas ainda é tão cedo! Bebe mais qualquer coisa! Ah, pois, ainda não bebeste nada, é um facto. Não querias falar sobre qualquer coisa? Porque olhas para a chávena do meu café fixamente e não dizes nada? Que silêncio... está tudo bem?
Querias estabilidade e não consegues. Pois, percebo. E não nos entendemos? Bem, é verdade que temos os nossos altos e baixos, julgava que fazia parte... mas tens a certeza?
Bom, está bem. Sim, eu dou notícias. Não, bem não estou. Mas hei de ficar. Não te preocupes comigo. Sim, eu sei que posso contar contigo se precisar de alguma coisa, obrigado! E se precisar de ti, o que faço? Bem, hei de me lembrar de alguma coisa entretanto, não te preocupes. Obrigado, desculpa, obrigado, adeus... sim, tenho trocos para pagar os cafés. Obrigado. Até qualquer dia então.
*
Water so warm that day
I counted out the waves
As they broke into surf
I smiled into the sun
Water so warm that day
I was counting out the waves
And I followed the short life
As they broke on the shore line
I could see you, but I couldn’t hear you

5 de setembro de 2007

Se te perderes em Lisboa...


Aquela tarde era uma página branca pronta a ser preenchida com uma tinta muito líquida, de uma caneta permanente que deslizasse, suave e freneticamente, desenhando movimentos que tragassem palavras completamente novas que contassem aqueles novos cheiros e cores. E aquela cidade seria um novo capítulo de um livro com tão poucas páginas já escritas; algumas, enrugadas de lágrimas; outras, riscadas de raiva; e outras ainda, amarrotadas de alegria.
Aquela tarde era de amarelo-torrado. A luz enchia o ar de pequenas partículas que caíam placidamente nas caras das pessoas. Espanhóis, brasileiros e outros estrangeiros passeavam calmamente pelas ruas do Bairro Alto. O rapaz da flauta lutava com o silêncio composto pelos passos anónimos e pelas pessoas que falavam de livros, compras, e coisas.
Cada linha do tecido daquele vestido lhe desenhava o corpo e libertava a alma de quem para ela olhava. Os seus passos, silenciosos, batiam o ritmo essencial da vida, do bater de um coração - nem demasiado molengão, nem demasiado
neurótico. É de crer que quem a observava poderia ter puxado do telemóvel, acedido às funções de cronómetro e calculadora, e medido este ritmo; contaria então 72 passos por minuto, o que daria o sedutor número de 1,2 passos por segundo. É de crer, mas ninguém o fez, pois não era preciso: os corações reconhecem o seu próprio ritmo sem fazer contas de cabeça, e rendem-se imediatamente à sintonia quando a encontram.
Nas ruas, nos cafés, nas esplanadas, as pessoas ficavam a vê-la passar. Os casais que por ela passavam em sentido oposto suspendiam os seus diálogos e miravam-na em algo mais do que um relance. Elas, para lhe tentarem copiar o estilo; eles, tentando com exagero mostrar que não repararam. Mas depois de uns metros, não eram poucos os que para trás olhavam por cima do ombro. "Julguei ver o fulano tal" - diziam às namoradas.
Aqueles passos de ternura desenhavam obras de arte no chão. E as suas pernas, troncos ingénuos com tão poucos anéis, sustentavam asas que estavam agora a aprender a voar. Ela era a árvore e o passarinho que nela pousa.
E as pessoas ficavam a ver. Quietas. Inquietas. Quedavam-se a olhar aquele jeito de mulher com cara de Vitinho. Vestido ondulante de rebeldia. Hálito de ananás e hortelã. E os passos, aqueles passos que lhes acompanham os corações naquele ritmo terno e viciante. Que cortam a respiração e fazem vibrar os tímpanos, e os martelos, e as bigornas, e os estribos, com a melodia que todos procuram pelas suas eternidades fora. É que há canções que não perduram nem depois de tocadas mil vezes, mas esta ficará imediatamente no ouvido após ser escutada pela primeira vez, no meio do ruidoso ambiente citadino, mesmo por ouvidos empedernidos por milhares de outras músicas passadas...

Tengo ganas de cantar
Una bonita canción
Que te haga comprender
Lo que hay en mi corazón

Una canción con dulzura
Que de ti hable y de mi
Diga que siente mi alma
Desde el día que te vi

Que tiki tiki tiki ti
Late así mi corazón

Es que estoy enamorado
De tu mirada preciosa
De tu risa y de tu boca
De tu cuerpo escultural

Que tiki tiki tiki ti
Late así mi corazón

Desde aquel divino día
En que yo te conocí
Y es por eso que la vida
No la suporto sin ti.
Passeava ela pelas ruas da nova cidade.
As fachadas dos prédios escondiam outros prédios mais altos por trás, e as estradas iam sempre dar a outras estradas. Tantas caras novas! E quantas direcções por explorar!
Vai formosa e segura, ou pelo menos assim pensam todos os que para ela olham, sem poder imaginar o nervosinho que lhe faz cócegas no estômago. "Nunca vou conseguir conhecer tudo isto!" - dirá ela para si - "Haverá em cada esquina um amigo? Quantos lobos daqui saltarão ao meu caminho?".
Mas não receia perder-se, porque alguém um dia lhe disse: "Se te perderes em Lisboa, desce. Hás de ir ter ao rio."

3 de setembro de 2007

Arripiado

Pressinto nas palavras o lúgubre silêncio de um mudo. Conseguisse eu falar, soubesse eu codificar de forma estruturada a causa desta insónia que fragiliza o meu sono. Há muito que não escrevia, julgo que perdi a capacidade de transpor para o papel qualquer ideia que ultrapasse o mero rigor teórico-científico. A fluidez com que outrora manuseava a caneta ou premia as teclas do computador esgotou-se em mim, comigo.
O vento sopra lá fora, ainda quente. Tudo dorme, pelo menos no raio mais próximo. A música acompanha-me nesta viagem pela escrita, serena, bela. Ouço a sonata ao luar de Beethoven e reconheço nela uma beleza tão antiga quanto a minha (nossa) existência. Na intimidade da noite, sigo as notas do piano. Calma, consentida pelo meu espírito agitado que corre apressado na incessante busca do silêncio melódico do campo, da maresiada brisa do Sul, do gélido Inverno a Norte. Ah, como anseio por um pouco de ar.

Percorro os quatro cantos do meu quarto, da cidade, e não encontro neles qualquer saída. O fumo infiltra-se no meu corpo insuflado e o espaço exíguo que me cerca esvai-se a cada segundo que passa. Apenas a guitarra compensa esta asfixia constante. Mesmo que soltas e sem nexo, encontro nas notas um caminho para o indizível. O som vibra nos meus dedos e eis que uma amálgama de emoções escoa pelos meus braços e depois por todo o meu corpo. Sinto-me leve e despojada, renunciando a tudo o que existe para além de mim e de um simples objecto que no mais subtil dos harpejos ganha vida.
Dizia Vergílio Ferreira em Estrela Polar que "Não se Ama uma Pedra. Amar é reconhecer nos outros um ser misterioso, e não um objecto (…) Aqueles que não amamos nem odiamos são nítidos como uma pedra. Sentir neles uma pessoa é começar a amar ou a odiá-los. Só amamos ou odiamos quem é vivo para nós." Apesar de verosímeis (sobretudo no contexto da obra), reconheço nestas palavras a minha mísera condição de amar um objecto, tão misterioso quanto mais o conheço e tão vivo quanto mais o amo.
Quando percorro as ruas ou viajo em transportes públicos procuro compensar a minha solidão tentando desvendar os pensamentos daqueles que, também solitários, se sentam ou passam por mim. Bem sei que não sou dotada de poderes premonitórios nem tão pouco telepáticos, contudo apraz-me tentar desvendar o seu nome, a sua vida, os sentimentos e pensamentos que vibram naquele preciso instante. Apesar de tais tentativas, a minha curiosidade e interesse cedo desvanecem. De repente, o intermitente e irritante mascar da pastilha elástica, já seca, sem sabor, o roer ruminante das unhas e os embrutecedores estalidos dos nós dos dedos transfiguram o semblante daqueles que me acompanham, de mim própria. O Homem torna-se num verdadeiro objecto, grotesco e insignificante como as pedras da calçada que pisamos ou como os pacotes de cigarros e os filtros que se amontoam pela orla dos passeios.
Tem sido particularmente difícil assumir uma existência embrutecida impregnada por um espírito eminentemente vivo. Se por um lado sinto uma vontade enorme de dar a vida em prol do bem estar dos meus companheiros de viagem, por outro sinto que é uma luta inglória e que apenas trará sofrimento e agruras. Sei que prevalecerá para sempre o objectivo primário de contrariar a morbilidade e sofrimento, contudo os riscos inerentes a essa missão fazem germinar um sentimento relutante. Será que vale a pena lutar e dar a vida pelo próximo? Poderá até nem valer, porém, com que direito ousamos julgar-nos superiores a ponto de centrarmos a existência somente na nossa vida e na daqueles que amamos?
Chegamos então a uma encruzilhada. Amamos nós os doentes, pessoas desconhecidas, pedras? Ou limitamo-nos a tratar de doenças somente porque amamos a vida ou porque no fundo da nossa essência existe algo desconhecido que nos impele a tal anseio pela cura e manutenção da espécie?
Ao longo dos anos de curso e de extensas horas de espera pelos corredores dos hospitais instalou-se em mim a dúvida – será que vale a pena? Embora seja uma questão pertinente, a resposta surge em mim como um verdadeiro axioma – vale! As constantes desilusões que sinto ao escutar as maledicências entre colegas que ecoam pelos corredores e pelos cubículos onde os “mestres” confortavelmente se instalam, a demissão do ensino por parte dos senhores doutores, a irresponsabilidade por parte de muitos doentes, a constante competição e luta pelo maior número de actos cirúrgicos, entre tantas outras contrariedades que me afligem e com as quais me vou deparar no futuro, não são suficientes para demover do espírito humano (sobretudo daqueles que escolheram a medicina para profissão) o instinto de sobrevivência em si impregnado desde as origens.
É desse instinto que surge a força que nos impele a amar um doente como uma pedra ou a sentir por uma pedra o amor que resplandece daqueles que amamos com toda a intensidade da vida. O caminho que já percorremos e o limiar ténue que nos separa do abismo que é a nossa condição de estagiários não é fácil. Penso que grande parte de nós já se sentiu (ou sentir-se-á) perdida nalgum ponto do seu percurso. Porém, quando a dúvida surge, há que apaziguar as interrogações e seguir de forma “irracional”, diria mesmo, puramente “animal”, esta dádiva enorme que é poder ajudar o próximo.
Este texto pode parecer despropositado e desconexo. Apesar disso, penso que vale a pena relembrar que ser médico vai além da indumentária estetoscópica. Ainda que as duvidas existenciais interpelem as nossas certezas, ainda que os problemas pessoais e quotidianos possam causar alguma instabilidade, é impreterível manter a frieza terna e complacente. Acima de qualquer amor, ódio ou instinto humano devemos ser realmente bons naquilo que fazemos, assumindo de forma consciente e honesta a inigualável e importante missão que nos foi concedida. Lutemos pela Vida.

"Sê"

Se não puderes ser um pinheiro, no topo de uma colina,
Sê um arbusto no vale mas sê
O melhor arbusto à margem do regato.
Sê um ramo, se não puderes ser uma árvore.
Se não puderes ser um ramo, sê um pouco de relva
E dá alegria a algum caminho.

Se não puderes ser uma estrada,
Sê apenas uma senda,
Se não puderes ser o Sol, sê uma estrela.
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso...
Mas sê o melhor no que quer que sejas.

Pablo Neruda