Desta vez, não sou eu o autor do próximo post. Ainda não foi desta que me senti inspirado para escrever de novo. Em compensação, cedo a palavra a uma pessoa que me escreveu um texto e que, espero, não se irrite comigo por eu ter decidido divulgá-lo. Claro que gostei muito dele, também tenho direito a ser vaidoso... por outro lado, deixo-vos aqui com uma foto minha que tudo tentei para que não me mostrasse gordinho que nem um macho :p
Um grande bem-haja!
*
Pequenos grandes heróis
Nunca tinha reparado no João até ele ser da minha turma.
Um puto calado, mas mesmo calado, extremamente observador, com um brilho no olhar que confundia, sei lá eu como, alguma mágoa e uma vontade enorme de viver. Acho que só dois meses depois do ano lectivo ter começado é que comecei a entendê-lo e, lembro-me bem, foi no estágio de Pneumologia.
Estávamos sentados - pouco habitual - no corredor do Serviço à espera (usual stuff) que chegasse um assistente para nos dar uma aula. Acho que já toda a gente falava bem com o João e eu não. À primeira vista, ele não me inspirou confiança, talvez porque desconfie sempre das pessoas que parece que me lêem a alma - ou pelo menos que me pareça que estão a tentar lê-la. E o João, como se adivinhasse os meus pensamentos, disse
Epá, eu sou um gajo calado, mas sou muito observador e uso isso para fazer piadas
a propósito de estar toda a gente quase em lágrimas de riso com o que ele estava a dizer. A história parece fraca, e provavelmente o é, mas a partir desse dia - e dessa frase - comecei a aproximar-me do João. No fim desse estágio, acabei por saber de uma coisa terrível, pelo menos foi para mim sabê-lo: o pai do João estava gravemente doente há já algum tempo e isso acabava por explicar tanta coisa.
Um cancro que metastizara para os ossos, o pai que não dormia por causa de dores que a nada cediam, o João que tomara controlo da situação e era o chefe de família, o aluno de Medicina, o jovem adulto com direito aos seus interesses, um gajo com um sentido de humor e de ironia irrepreensíveis. Ele no meio de tudo aquilo - malabarista de vidas humanas, equilibrista da sua própria vida.
Um dia roubaram-me um beijo e eu, que não andava nada bem, fiquei contentíssima com isso. Cheguei a casa naquela agitação, ainda embriagada (o beijo aconteceu numa saída à noite) e vejo que o João e outros dois colegas estão num enorme regabofe e eu, no meio daquela alegria toda,
que é que fazem acordados a estas horas?
e, piada para ali para acolá,
olha estamos aqui porque o meu pai morreu esta madrugada.
O meu peito encolheu-se e eu deixei de poder respirar durante algum tempo. Senti uma dor tão, mas tão grande, um abalo tão forte, como uma chapada de mão seca numa bochecha de bebé (imagino que isso doa bastante). Ao João não lhe apetecia muito falar sobre isso, então falámos da minha desilusão amorosa e o João deu-me valiosos conselhos e ouviu-me com atenção. Naquele dia em que uma vida se perdera, e em que ele presumivelmente perdeu parte de si próprio, ele ouvia-me porque eu estava de coração partido, no seu altruísmo, na sua generosidade imensa.
O João, um puto calado, muito observador, que sempre me fez rir e que tem um coração maior do que si próprio. Um pequeno grande herói, com cara de miúdo e uma vida das antigas.
Desculpa esta porcaria de texto, João. Mas é para ti.
Um puto calado, mas mesmo calado, extremamente observador, com um brilho no olhar que confundia, sei lá eu como, alguma mágoa e uma vontade enorme de viver. Acho que só dois meses depois do ano lectivo ter começado é que comecei a entendê-lo e, lembro-me bem, foi no estágio de Pneumologia.
Estávamos sentados - pouco habitual - no corredor do Serviço à espera (usual stuff) que chegasse um assistente para nos dar uma aula. Acho que já toda a gente falava bem com o João e eu não. À primeira vista, ele não me inspirou confiança, talvez porque desconfie sempre das pessoas que parece que me lêem a alma - ou pelo menos que me pareça que estão a tentar lê-la. E o João, como se adivinhasse os meus pensamentos, disse
Epá, eu sou um gajo calado, mas sou muito observador e uso isso para fazer piadas
a propósito de estar toda a gente quase em lágrimas de riso com o que ele estava a dizer. A história parece fraca, e provavelmente o é, mas a partir desse dia - e dessa frase - comecei a aproximar-me do João. No fim desse estágio, acabei por saber de uma coisa terrível, pelo menos foi para mim sabê-lo: o pai do João estava gravemente doente há já algum tempo e isso acabava por explicar tanta coisa.
Um cancro que metastizara para os ossos, o pai que não dormia por causa de dores que a nada cediam, o João que tomara controlo da situação e era o chefe de família, o aluno de Medicina, o jovem adulto com direito aos seus interesses, um gajo com um sentido de humor e de ironia irrepreensíveis. Ele no meio de tudo aquilo - malabarista de vidas humanas, equilibrista da sua própria vida.
Um dia roubaram-me um beijo e eu, que não andava nada bem, fiquei contentíssima com isso. Cheguei a casa naquela agitação, ainda embriagada (o beijo aconteceu numa saída à noite) e vejo que o João e outros dois colegas estão num enorme regabofe e eu, no meio daquela alegria toda,
que é que fazem acordados a estas horas?
e, piada para ali para acolá,
olha estamos aqui porque o meu pai morreu esta madrugada.
O meu peito encolheu-se e eu deixei de poder respirar durante algum tempo. Senti uma dor tão, mas tão grande, um abalo tão forte, como uma chapada de mão seca numa bochecha de bebé (imagino que isso doa bastante). Ao João não lhe apetecia muito falar sobre isso, então falámos da minha desilusão amorosa e o João deu-me valiosos conselhos e ouviu-me com atenção. Naquele dia em que uma vida se perdera, e em que ele presumivelmente perdeu parte de si próprio, ele ouvia-me porque eu estava de coração partido, no seu altruísmo, na sua generosidade imensa.
O João, um puto calado, muito observador, que sempre me fez rir e que tem um coração maior do que si próprio. Um pequeno grande herói, com cara de miúdo e uma vida das antigas.
Desculpa esta porcaria de texto, João. Mas é para ti.
Joana Batista
20.04.2007