30 de novembro de 2006

Esclarecimento sobre a ordem Natural das coisas

Nunca fui pessoa de acreditar em coincidências. Tenho aquela ideia que o que acontece acontece por alguma razão ou por razão alguma e não por ter de ser. Julgo pertencer ao grupo de pessoas que o que não explica atribui a factores aleatórios. Há uma certa probabilidade de levar com um vaso de uma frondosa Avenca na cabeça enquanto se desce a Avenida da Liberdade.

Penso eu que quem anda à chuva molha-se por que quer e não porque tem de ser. Eu penso tudo isto, e certo estou do que digo mas, que probabilidades nos metem em rota de colisão com certos acontecimentos?

Visualizo esta questão naquele jogo em que se larga uma bolita, género berlinde, por uma parede vertical abaixo, em que esta está cheia de pregos e na base tem balizas com prémio ou armadilha. A aposta que fazemos à partida é completamente cega, e as possibilidades são imensas mas mesmo assim temos uma fezada no prémio.

As nossas vidas são lançadas por uma parede vertical abaixo e vamos ressaltando nos pregos, por vezes com ricochetes violentos, que nos fazem subir ligeiramente a vertical parede, por vezes leves embalos que parecem propositados e pior: premeditados! Se por vezes exclamamos admirados com a pequenez do mundo, por outras somos levados a exclamar que fado é o nosso.

Será que das infinidades de ressaltos possíveis estão para mim destinados aqueles específicos para atingir a baliza pré destinada? Será que a probabilidade de atingir cada baliza é a mesma ou estará o jogo viciado sem que saibamos?

Se estes embalos e ricochetes são pré determinados, parecem ser muitas vezes bem curiosos mas vêm em última análise darem-me razão: somos nós que nos pré determinamos. O que anda à volta vem de volta!

26 de novembro de 2006

apontamento


A chuva corre nos vidros. Vêm reflexos de luzes, gemidos de uma multidão que se atropela, sirenes que em tons de azul desesperam, agonia que impera, sangue que exaspera em mim, aqui. Tudo lá fora tem vida que se esconde entre as fragas da solidão e eu, só, vivo a energia deste silêncio, da vibrante calma que o consente.
Tudo dorme a par do cansaço lúgubre dos tempos e de repente ouço passos de gente que se aproxima, maquinal como o correr dos dias, maciça como o cimento dos prédios que me cercam.
A noite vai longa e a chuva ressalta nos cristais das pedras. Vagueio pela escrita sem rumo à procura de um lugar mas nada encontro e esqueço quem sou. Os ossos, os músculos as articulações abandonam-me, voam pelo escuro da sala. Os vasos jorram sangue que se espraia ao vento, os nervos rastejam como vermes pelo chão. Eu renasço do pó de que era feita. Sinto a música que me ilumina e o som que me embala. Finalmente encontrei a vida sem que ela deixasse de existir em mim. Vem música serena e bela, abraça-me com todo o teu fulgor e leva-me nessa viajem louca.

7 de novembro de 2006

Fisiopatologia da solidão


O sol, amarelo todo o ano, mesmo no inverno; as gemas de ovo, amarelo vivo; as cores do vestuário, mesmo daquele que é lavado duas vezes por semana, sempre brilhantes e apelativas; os olhos de todos os amigos, sempre límpidos, de tons impossíveis de imitar com lápis de cera, guache, aguarela ou tinta de óleo…
As notas de cada música, vibrantes, guardadas no ouvido que, ávido, tudo capta, e interioriza; cada letra nos define, porque nos identificamos com ela, e porque nos transforma à medida que depois a exteriorizamos com os amigos.

As batalhas perdidas, as catástrofes, as desilusões… todas elas são combatidas de peito aberto, porque nada é definitivo ou eterno e há todo um futuro pela frente. Embora não o saibamos, as coisas que parecem insignificantes à luz da juventude são as que vão marcar para sempre.
Em cada dar de mão, em cada olhar trocado… em cada gargalhada em conjunto, há um aumento de pulsação e um ruborizar de face. Nada é eterno? Julga-se que os amigos o são! Nunca se pensa neles no futuro. Gosta-se deles, partilha-se a vida com eles, mas sempre no presente. São como são e gostam de nós. São quase como nós, mesmo sendo muito diferentes. Mas ouvem, avisam, aprendem, acompanham, ajudam, acompanham de novo, sempre, e preocupam-se. Aconselham; quando bem, porque é o que querem, quando mal, porque se enganam. São as melhores pessoas do mundo, insubstituíveis; chega-se a ter pena das outras pessoas, que não têm os amigos que nós temos. Os outros têm amigos interesseiros, egoístas, que não se podiam estar mais a borrifar. Os outros têm sempre grupos de amigos que, volta não volta, desaparecem e são substituídos por outros, novos, iguais, sem piada nenhuma, sem sal, burros, pouco interessantes, de personalidades pouco densas. Os nossos amigos é que são fixes. Escolhemo-los a eles, mas eles também nos escolheram a nós. Somos uns privilegiados. E ainda bem que temos muitos amigos!

Eram muitos. Mas vão desaparecendo, enquanto o tempo passa. Não aqueles que se vão embora para outras escolas; não os que morrem (esses, de certo modo, vão ser sempre amigos); não os que, em meia dúzia de meses que passam, atravessam a rua para não terem que nos encontrar. Não aquelas pessoas que aparecem e desaparecem fugazmente ao sabor da novidade e da necessidade de afecto. Os que desaparecem, realmente, são aqueles que continuam junto de nós, mas se vão modificando lentamente… vão acumulando diferenças, vão ganhando indiferença, e a preocupação que têm por nós e a importância que nos dão desvanece-se. Continuamos a gostar deles porque sempre estiveram mais ou menos ao pé de nós; mas, na verdade, eles já não nos lembram o tempo em que eramos mais novos. O que é assustador é que este é um processo irreversível, sucede a cada ano, imparável, e sem nos darmos conta. É uma doença insidiosa, de desfecho previsível, de prognóstico reservado.

Os velhos amigos lembram-me sempre o tempo em que os conheci, porque nunca mudou a relação que nos une. As faces vão ficando diferentes. As feições tornam-se mais angulosas, carregadas, mas a maneira como sorriem ou explodem em gargalhadas é sempre igual, sempre com piadas ou situações mil vezes contadas e recontadas. Esses velhos amigos sabem quando estou a dizer uma coisa que não é verdade; e sabem que, se o digo, não é para lhes mentir, e sim porque me estou a tentar convencer de alguma coisa que não corresponde à realidade. No entanto, dizem-no como se os estivesse a fazer de parvos: “Sabes há quantos anos te conheço? Pensas que eu não te conheço?”. E eu sorrio, embaraçado, porque eles têm quase sempre razão.
E se há algo de preocupante, algum desvio no seu comportamento, alguma diferença de actuação, imediatamente nos insurgimos. Indignamo-nos, porque aquele não é o nosso amigo, e portanto precisa de levar na cabeça.
É muito raro valorizarmos verbalmente os nossos verdadeiros amigos, porque os temos como certos. E essa previsibilidade acaba por ser a melhor maneira de os valorizarmos. Não é preciso um esforço para saber deles ou para os acompanhar, porque eles fazem parte das nossas vidas, ocupadas, quotidianas, mesmo sem nos darmos conta.

Quem desaparece, esquece; mesmo que não desapareça fisicamente da nossa vista. É o preço a pagar. Mas é a forma que temos de escolher quem queremos que nos rodeie, e quem preferimos que não faça parte das nossas vidas. E é também a forma que temos de ter a certeza de que quem permaneceu, ficou porque não poderia ter sido de outra maneira. As verdadeiras relações são como a água ou como a electricidade. Escolhem sempre o melhor caminho, o único caminho.

O crivo vai ficando inacreditavelmente largo. São tão poucas as pessoas que sobrevivem à selecção dos anos! Ainda sou novo e isto já me assusta. Já li vários emails daqueles que as pessoas mandam sucessivamente umas às outras, sobre como a amizade deve ser cultivada: “ligue ao seu amigo hoje mesmo e diga-lhe que gosta dele e mostre-lhe como ele é importante!”. Estive a pensar, e não concordo nada. Para quê fazê-lo, se esse amigo está sempre aqui ao lado? Até ia gozar comigo se o fizesse.

As circunstâncias são madrastas, e perdem-se muitas pessoas de quem gostamos, boas pessoas, mas cujas vidas as levam para longe de nós (obrigado, Mafalda Veiga, benza-te Deus). Penso nisso muitas vezes, e eu próprio estou a ser levado para longe de várias pessoas por forças que não compreendo bem. São forças pouco intensas, muitas vezes imperceptíveis; mas são muitas, e a união faz a força resultante! O balanço é esmagador. A velocidade de afastamento começa por ser pequena; mas uma pequena aceleração ao longo do tempo suficiente, produz por fim uma velocidade enorme, e uma distância percorrida proporcionalmente grande. E as ligações são inversamente proporcionais ao quadrado da distância entre elas.

Claro que continuo a gostar dessas pessoas, e quando me lembro delas ainda sorrio, mas a pouca convivência e a distância (relativa ou absoluta) tende a adicionar diferenças de gostos, de carácter e até de valores. A barreira da ausência permite que se acumulem essas diferenças nas interfaces relacionais que antes encaixavam na perfeição.
As nossas vidas caem na quiescência…

Acredito que os melhores amigos que tenho, já os fiz. É um pouco como com a reserva óssea de cálcio. Bebe muito leite e faz exercício enquanto és jovem. Economiza, acumula. Vou ficar mais velho, e as pessoas que conhecer não vão estar tão disponíveis para ser amigas como estavam antigamente. As folhas em branco das vidas das pessoas acabam-se… o futuro produtivo esgota-se. E as relações que fizermos não vão ser mais do que palavras escritas nos espaços entre frases já escritas por outras pessoas; serão palavras gravadas por cima de papel que já sofreu censura de borracha e está encharcado em desconfiança, ou que já está rasgado. Não vai haver praticamente espaço para o completamente novo e surpreendente. É cada vez mais difícil ser marcante para alguém, e isso entristece-me muito, embora o compreenda porque sinto a mesmíssima dificuldade em me deixar marcar. É por isso que admiro e respeito as pessoas mais novas do que eu: exibem com alegria e espontaneidade a capacidade de se deixarem marcar.
*

As gemas de ovo parecem-me baças. O sol parece-me mais branco e mais frio do que há uns anos. As minhas t-shirts nunca têm cores tão intensas como gostaria que tivessem, mesmo acabadas de sair da loja. Os meus olhos parecem-me mais empurrados para dentro da cabeça, e o branco já não faz tanto contraste com a cor da íris.

E a música de hoje parece-me toda igual…