6 de outubro de 2004

Fuga

A passo frenético e rotineiro lá vou inconscientemente respirando o saturado ar desta ignóbil cidade de buzinas constantes e intransigentes, de gente boa e má, de escravos e lordes! Bombardeada pela fulgurante imagem da publicidade, da inexistente necessidade criada, deixo-me sufocar e levar pelo individualismo egoísta da vida urbana. Mergulhada num mundo de ilusão, crédito e facilidade, vejo os cegos inocentes habituados a uma realidade miserável, em que os valores morais são suplantados pelos bens materiais, pelos enormes e sedutores corredores do consumo que subtilmente os entretêm. A par desta triste realidade, os protegidos do sistema, sustentados pelo suor daqueles que trabalham, facilmente o esquecem e, ao som dos mastros e velas, lá se vão banhando num restrito sol que, dito universal, não passa de pura miragem para aqueles que famintos e cansados consomem a sua inglória vida por um simples raiar! As crianças, despejadas em escolas sem tecto, lá vão sobrevivendo: deixando-se endrominar pelos desígnios da televisão; dando continuação a esta marcha progressiva em direcção ao nada. Os jovens, condenados à virtualidade do sistema educativo apoiado na teoria, decoram com frias palavras a preciosa e maravilhosa natureza, condensada em pequenas e limitadas imagens, pobremente reduzida a parágrafos sem vento, sem cheiro, sem som... A sua irreverência e sede de lutar por causas facilmente os faz aderir às inglórias manifestações, muitas vezes ignoradas e desacreditadas por uma censura egocentrista e indiferente, comandada por aqueles que também um dia foram jovens mas que agora, habituados a um mundo por eles banalizado e corrompido, apenas pensam em si e no seu bem-estar, tendo por lema: ganhar!Os idosos, que outrora foram o suporte de tudo e hoje são ignorados como inúteis fardos, nos bancos de jardim jogam as suas cartas, nos balcões das farmácias depositam a sua miserável reforma, no empedrado da rua pedem apenas por um pedaço de pão! Os drogados, doentes, sujos e viciados, contribuem para este cenário aterrador, destruindo as suas vidas e as dos outros, mutilando a preciosidade que é viver! Nas primeiras páginas, o crime, o racismo e a crise são uma realidade que se mistura no sufocante pó das inacabáveis obras, acabando por cair no fosso que é a nossa economia. É este o mundo em que eu vivo, é esta a realidade que me provoca uma tremenda tristeza e desolação, é esta a cidade que me faz querer fugir para o lugar dos meus sonhos que, embora desprovido de todas as inovações materiais, é dotado de toda a riqueza das mais sinceras e puras relações humanas, livres do egoísmo, da decadência, da aparência e da falsidade das grandes urbes comandadas por fortes apelidos, sustentadas por humildes desconhecidos.

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