8 de outubro de 2023

"Tu tens que me comer!"

 


            Os pneus esmagaram as primeiras folhas de outono contra o empedrado de granito enquanto o automóvel estacava ao lado de um portão de ferro com balões azuis e vermelhos  pendurados.  O calor que se fazia sentir era anormalmente elevado para a época do ano. O Joca e a sua filha iam a uma festa dos cinco anos de um colega da escolinha, e quando chegaram já muitas crianças corriam e pulavam por toda a parte.

           No meio do jardim, um enorme barco pirata insuflável suportava os pulos dos miúdos e abanava por todos os lados. Ouviam-se guinchos de crianças e algumas vozes dispersas de conversas dos pais, de copos e garrafas de cerveja na mão. A criança largou a mão do pai e foi a correr descalçar-se atabalhoadamente para depois se lançar no insuflável sem cumprimentar primeiro quem quer que fosse.

O Joca deslocava-se quinzenalmente de outra cidade distante para estar com a filha, e portanto não conhecia bem a maior parte dos seus coleguinhas ou os respectivos pais, pelo que ficou meio perdido no meio da balbúrdia, com um embrulho na mão e outro no estômago.

Havia trocado algumas mensagens com amigos antes da viagem.

“Não te preocupes, se não te sentes bem em socializar deixas lá a miúda e vens embora, nem todos os pais ficam, é sempre assim” – dizia uma.

A outro, dizia: “Ficar aqui especado e a tentar fazer conversa da treta? Hell, no!”.

E este tinha respondido: “Ai é da linha do Estoril? Esse restaurante da marginal é excelente! E em conta! Já lá foi? Não?! Como não? A Carlota e a Teresinha adoram!”.

O pai do aniversariante perguntou-lhe se queria beber alguma coisa e disse-lhe que estivesse à vontade, mas recusou de forma delicada, argumentando que infelizmente tinha coisas para fazer. Perguntou à mãe do menino a que horas pensavam cantar os parabéns e partir o bolo, trocaram números de telefone, e saiu dali consolado por ter pelo menos três horas para descansar da viagem.

Foi feito num ápice o percurso de quinze quilómetros até ao sótão que tinha arrendado com o objectivo de estar com a filha, e pouco tempo depois já estava deitado na cama, entregue a si e às suas ansiedades, no silêncio batido pelo tique-taque do relógio de parede. 


*


Acordou uma hora depois, um pouco mais sereno. Decidiu regressar à festa de anos mais cedo para ver a filha a divertir-se e talvez tirar-lhe algumas fotografias. Esmagou novamente as primeiras folhas de outono com o automóvel e atravessou o portão de ferro, e em menos de dois minutos puseram-lhe uma carlsberg na mão.

Viu-a aos pulos no insuflável, eufórica, enquanto lhe fazia caretas. As mães das outras crianças metiam conversa com ele à vez, talvez curiosas por um elemento estranho, e diziam-lhe que tinha uma filha muito fofinha e outras palavras de circunstância. Sentiu-se mais calmo, embora não conhecesse ninguém ali.

Depois, a menina decidiu sair do insuflável e enfiar-se num trampolim pequeno protegido por rede a toda a volta, e foi logo seguida por outra. Ao entrar, esta chamou-o de papá, fitando-o e sorrindo. A sua mãe, que estava por perto, explicou que a sua filha falava muito nele e nunca mais se tinha esquecido de como em junho, na festa de anos da filha do Joca, ele tinha brincado com as crianças todas e com ela. Nessa ocasião, enquanto os pais conviviam uns com os outros sentados ou com copos na mão, havia sido ele a vítima consentida das crianças, fazendo de monstro, rugindo, fingindo que as mordia, pegando-lhes em altura, perseguindo-as e sendo perseguido, sendo puxado, empurrado, preso, esmagado, até ficar com a t-shirt larga e rasgada. E como a sua filha o chamava de papá, as outras crianças imitavam-na.


*


O Joca era talvez das pessoas mais velhas presentes, embora parecendo um pouco mais novo, talvez porque continuava a vestir-se como um rapaz, a falar como um rapaz e a mexer-se como um rapaz.

“Pai, tu és o monstro e tens que nos apanhar!” – disse-lhe a filha, enquanto saltitava no pequeno trampolim e corria à volta junto à rede, enquanto o pai fingia que a tentava apanhar do lado de fora. A outra menina encostou-se à rede de propósito e gritou :”Papá, tu tens que me comer!”. Ouviram-se risos baixinhos das mães que observavam. Uma levou a mão à testa. Outra disse-lhe: “a sua filha tem tanta sorte por o pai brincar com ela! O Joaquim…se não fosse eu a brincar com a minha filha…”.

O Joca encolheu os ombros e levantou o cantinho dos lábios. Conhecia por experiência própria e alheia a realidade das mal casadas, das mal juntas, das bem divorciadas, das mal comidas porque eles não querem ou porque elas deixam de querer, dos erros de casting e das histórias dos casamentos porque-é-o-que-se-espera, porque-está-na-altura, porque-é-o-meu-melhor-amigo, e não desejava isso para si. Não tinha chegado a casar, mas isso não importava muito.

 Aquele instante serenou-o finalmente por completo, ao certificar-se de que esse chamamento surgiria de forma visceral num determinado momento, sem dúvidas, meios-termos ou sacrifícios de alma, ou talvez isso nunca acontecesse.

 Mas já o tinha sentido.

1 comentário:

  1. E há também os que fazem o que se espera, desesperam e recomeçam de um novo meio 😀

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