No pico deste verão, às 3 da manhã, estava eu a trabalhar sem ar condicionado e com 35 graus de temperatura ambiente. Já estava mais do que na hora de tentar descansar um bocado, já não havia o que fazer, e portanto encaminhei-me para sair. Estava quebrado pelo calor, mais do que pelo trabalho.
Já tinha pensado em deixar de trabalhar ali há algum tempo, mas não tinha sabido dizer que não a quem me pediu para trabalhar nestes dias, e portanto tinha cumprido com a palavra dada. Sempre foi um ponto de honra para mim o não virar o bico ao prego e deixar alguém na mão, mesmo que isso me prejudicasse mais do que beneficiasse. Um parvo sem noção.
Encaminhei-me para a sala de espera geral para sair pela porta.
Estavam bastantes pessoas sentadas nas cadeiras, algumas de olhos fechados, outras de canadianas ou de cadeiras de rodas, algumas a conversar em sussurros. Na televisão transmitiam as televendas. Quase silêncio e bastante calor.
Vieram umas enfermeiras da Pediatria a correr atrás de mim para me apanharem antes que saísse.
"Doutor, doutor! Não se vá embora!".
Vinham com uma senhora com uma menina pequena ao colo.
"Não há Pediatria hoje no hospital... Mas podia ver a criança? Tem um bracinho magoado...".
Olhei para a menina ao colo da mãe. Estávamos todos em pé no meio da sala, e ela obviamente não me queria deixar mexer no cotovelo e esperneou um bocadinho. Toda a gente a olhar.
"Estás cheia de soninho, não é? Pois... também eu... deixa cá ver o teu cotovelinho... sim, eu sei que não queres... eu sei que é muito chato...", trlick!, "Pronto... já está... já não te faço mais mal..." ... calou-se. As enfermeiras e a mãe ficaram admiradas e agradecidas. A plateia da sala de espera olhava curiosa para mim, sujo de gesso, em fato de treino, desgrenhado, olheirento, e farto de ali estar. Parecia e sentia-me um desenterrado, desterrado, longe de casa.
Virei-me logo e fui-me embora.
Pela primeira vez não senti orgulho ou regozijo.
E subitamente deixou de me fazer sentido o trabalhar tanto, ou melhor, o decidir estar ali, ou melhor ainda, o achar que as pessoas eram mais bem tratadas se eu ali estivesse; ou o ganhar dinheiro que podia ser importante para depois, sacrificando sucessivamente os agoras e todas as formas com que poderiam ter sido preenchidos em alternativa. Não tinha havido agoras que me oferecesse a mim próprio durante anos, e muito menos partilhara agoras suficientes com aqueles que gostavam de mim. Em vez disso, tinha até então extraído satisfação na minha capacidade de encaixar trabalho por cima de trabalho no calendário, num tetris perfeito.
Foi nesse exacto momento que o fiel da minha balança desvariou de dor, e um dos pratos rebentou a corrente que o prendia e embateu violentamente cá em baixo, partindo o chão de mármore e despenhando-se na cave da minha consciência - o prato dos sorrisos que não vi, das saudades acumuladas, do ressentimento do amor perdido, dos últimos momentos que podia ter tido com as pessoas queridas que partiram entretanto.
*
"Olha para a tua trajectória e pensa se alguma vez fizeste alguma coisa para magoar alguém, se tiveste intenção de causar dor a alguém. Não tiveste. E podem dizer-me que não interessa a intenção, que o que interessa são as consequências.
Eu não concordo.
Tudo interessa e as intenções também! Porque elas demonstram o que está no nosso coração. E para além disso, tu foste reagindo ao que foi acontecendo na tua vida... e que, sinceramente, não tirou o bom de dentro de ti.
Sabes, eu uso uma expressão quando me refiro a alguém ou alguma coisa que me faz sentir o porquê de viver e que sei que é um sinal de que o amor existe (e estou a falar simplesmente de amor, amor puro... não necessariamente de relações amorosas): colo de deus.
Veio-me essa expressão em alturas em que não estava muito bem. Então, para tentar sentir-me melhor, fechava os olhos e imaginava que estava literalmente no colo de deus... e por vezes resultava. Ficava numa paz e sentia que podia acontecer qualquer coisa, que nada interessava naquele momento. E a partir daí, quando conhecia alguém ou via alguma coisa simples e especial, sabia que era aquele o colo de deus.
Só podia ser.
E tu... já foste e és o colo de deus para muita gente e ainda serás para muita.
Agora estarás a pensar que eu estou a dizer isto porque não te vejo os defeitos e tal... mas não tem absolutamente nada a ver com isso. Provavelmente terás defeitos como toda a gente, mas orientas-te por um fundo bom.
O que eu disser não vai mudar o que sentes ou pensas... mas tu estás no caminho do bem e, na verdade, eu acho que sempre estiveste.
Uma vez ouvi uma frase deste género: "se não dermos comida ao nosso bicho interior, ele vai-nos incomodar até lhe darmos o que nos faz felizes". E aqui a palavra bicho eu substituo por alma... eu não sei o que te faz feliz, mas foi isso que tu sempre quiseste de certeza.
Meu querido, tu mereces tanto ser feliz!
Talvez não o tenhas feito sempre porque acabaste por silenciar a tua alma.".
D.S., em mensagem dirigida a mim.
14-10-2023
*
Hoje ouvia Lofi lounge no youtube enquanto escrevia. Havia um salmão com leite de côco a assar no forno para o jantar. A música fundia-se com o canto grave do vento que soprava as frinchas das portas mal vedadas da varanda da sala, temperado pela chuva abandonada em saraivadas.
Estava em boa companhia, a 283 quilómetros de casa.
Depois voltei ao trabalho para cumprir com uma última palavra dada.
Na rua a chuva molhava agora os tolos, e parecia despejar-se dos focos dos candeeiros rodeados de escuridão, de que saí para o branco fluorescente do hospital. E os meus colegas ficaram estupefactos quando lhes disse que não vinha mais.
"Mas porquê? Passa-se alguma coisa? Estás bem?"
Nunca estive melhor.