16 de novembro de 2011

O melhor céu

O melhor céu já foi em junho e era laranja.

Podia vê-lo filtrado pelos ramos de uma enorme figueira que espalhava por toda a parte aquele cheiro leitoso e doce de Junho. Os pardais faziam um chinfrim de fim de tarde na sua copa, e, embora fossem certamente muitos, só conseguiamos observar uma ou outra silhueta fugaz de vez em quando. Nessa altura, o meu pai aproveitava para apontar a pressão-de-ar. Xu-xu-xu quieto!, soprava ele, de mão muito aberta, palma virada para o chão.

Depois produzia-se um som seco que calava o chilrear caótico e provocava logo um alvoroço que fazia crescer momentaneamente a copa contra o laranja desse céu. E depois eu corria à procura do resultado do tiro, vestido com uns calçonitos curtos, fintando com as pernas arranhadas a vegetação rasteira que atingia metade da minha altura.

Tenho na memória uma cena, era eu ainda mais pequeno, passada em casa da minha tia-avó. Estavam várias pessoas sentadas à mesa numa sala mal iluminada de amarelo deslavado, por uma lâmpada incandescente de pouquíssimos watts; num dos cantos, por cima de uma bancada de cimento, havia um fogão de lenha improvisado entre dois tijolos, dispostos contra a parede enegrecida por incontáveis demãos de fumo.

Naquela casa sempre se comeram coisas muito boas, e dessa vez, estava eu ao colo de não-me-lembro-quem, tinha provado pardalinhos fritos em óleo e alhos. Aquele molho era, até a altura, uma das melhores coisas que eu provara.

Talvez fosse pela recordação desse sabor que nem me assomava à mente a vertente negativa de andar a chumbada aos pássaros.
Ou então era porque estava a caminhar com o meu pai por entre a vegetação rasteira que me arranhava as pernas, e se ele gostava de ir à caça, então eu também gostava.
Ou então porque era pequenino e não sabia o que era a morte, sabendo ao mesmo tempo que aqueles chumbinhos, que até eram moles porque os conseguia esmagar com os dentes, matavam pardais. É para mim fascinante a forma como as crianças conseguem viver bem com tais paradoxos.

Certa vez, um tempo mais tarde durante uma dessas caminhadas, acertámos de raspão num pardal, e demos com ele no chão, ainda vivo. Respirava muito depressa e mal se mexia. Quis pegar nele, mas o meu pai não permitiu.
Apontou-lhe a pressão-de-ar e desfez-lhe a cabeça com outro chumbinho; ele deixou de respirar.
Explicou-me a mim e à minha irmã, que estava connosco dessa vez, que era preciso acabar logo com o sofrimento do animal.
Nunca até então me tinha feito espécie ter as mãos sujas com o sangue dos pássaros que matávamos - a mim, que os carregava sempre enquanto caminhávamos. Por acaso, ou talvez não, essa foi a última vez que fomos aos pardais.

Passei há pouco tempo pelo mesmo sítio e reparei que construiram uma grande vivenda no lugar dessa árvore, que se calhar não era assim tão grande. Já não sei do paradeiro da pressão-de-ar, que, de resto, há muitos anos que não disparava. Chegou por telefone a notícia que a minha tia-avó tinha tido uma trombose e ficara menos bem.
E até estou aqui a pensar que talvez aquele molho dos pardalitos fritos em óleo e alhos não fosse assim tão bom.

Mas do céu laranja, filtrado pelos ramos da figueira, ainda me lembro bem.

Recordo-o certamente muito melhor do que recordaria se o tivesse contemplado ontem.

4 comentários:

  1. Grandes memórias!
    Não são poucas as vezes onde outrora viamos cabras e ovelhas a pastar agora temos prédios "plantados"...

    Abr!

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  2. Caro Pedro: por acaso, o texto fala de um sítio que não é em Queijas. Aqui sim, eu via ovelhas a pastar da janela, e passava pelo meio delas para ir para a escola...

    Este sítio de que falo chama-se Palhais... :)

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  3. João, onde estás? Não respondes aos meus mails, daqui a nada vou a Lisboa e quero ver-te. Eu sei onde moras....cuidadinho :)

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