Sei que se ligar o rádio do carro a horas certas, alguém de lá irá dizer-me percentagens entre três e meio e dez, por isso não vale a pena fazê-lo. Também sei que, se ligar a televisão na sic notícias, alguém estará a referir quarenta e duas horas e meia em vez das quarenta, portanto não o tenho feito. Também já não pego num jornal (digno desse nome) há meses, com medo que a capa me grite em letras garrafais outros números como cinquenta por cento do subsídio de natal, ou desaparecimento de décimo terceiro e décimo quarto mês para o ano.
E já vou a poucos fóruns de discussão, porque senão arrisco ler coisas como cinquenta por cento ou menos do valor da hora extraordinária obrigatória.
Estou farto de números.
Não pensem que não sei. Não se precipitem a dizer que tanto me faz. E acima de tudo, não me chamem já de resignado.
É que já não consigo sequer falar sobre isso. Quero jantar sossegado, ir para o trabalho a ouvir música, beber café a folhear um jornal, quanto mais não seja a ver os classificados do correio da manhã. Não quero viver permanentemente na angústia de quem se sente injustiçado. Não me apetece participar no desfiar desses rosários. E acima de tudo, já percebi que, seja qual a posição que tome - contra, a favor, céptico, fervoroso apoiante, neutro - alguém se vai virar contra ela e dizer que sou um privilegiado, ou que falo de barriga cheia, ou que não tenho sentido cívico. Esta é daquelas ocasiões que talvez não deva perder para estar caladinho.
Fui então beber o café e ler os classificados do correio-da-manhã. Detive-me sobre um deles que anunciava a cedência de quotas num dos colégios mais conhecidos da linha de cascais, mas na altura nem pensei muito sobre o que aquilo poderia significar. E depois fui pedir outro café, que por enquanto mas não por muito mais tempo, custa sessenta cêntimos, e reparei que estavam a tirar cariocas com "terceiras-águas".
Depois lembrei-me que também aqui haverá números a mudar de treze para vinte e três.
Fui pagar, mas à minha frente na fila para a caixa estavam duas senhoras de meia idade, de casaco à laia de vison mas sem o ser.
O senhor foi buscar o pão e o bolo pedidos pela primeira, e quando virou as costas, ela esticou a mãozita e enfiou meia dúzia de pacotes de açúcar no grande bolso.
Fiquei de boca aberta sem querer, mas é claro que não disse nada, e nem tive muito tempo para reacções, pois em seguida a segunda senhora também pediu pão ao empregado, e desta feita foram dois os bolsos cheios de pacotes de açúcar.
Podia falar também das pessoas, com bom aspecto e vestidas sem ser à mendigo ou à toxicodependente, a remexer no lixo deixado ao lado dos contentores, à noite, quando vou passear a cadela à rua.
Podia falar de como o nosso circo está a pegar fogo com os números perigosos que se estão a praticar, com promessas de acrobacias ainda mais arriscadas e impressionantes no futuro.
Mas não me apetece, nem é útil. Vocês já sabem isto tudo.
E por muito que não queira olhar para as cartinhas dos vencimentos ao fim do mês, ou para os jornais, sites, canais de televisão, boletins noticiosos na rádio... quando as coisas sucedem à minha frente, não dá para fugir. E, pelo menos para já, tem sido "só" com os outros.
Não tenho vontade de falar mais sobre o assunto, nem tenho grandes ideias. Mas uma coisa que aprendi é que quando se corta o aporte, provoca-se necrose. Hoje dá a notícia de que cem mil pessoas já emigraram este ano, e as que cá ficam não ficam melhor por isso, antes pelo contrário.
Tal como não consigo apontar soluções, também não posso terminar este texto de forma bonita. Apenas posso dizer uma coisa: não estou convencido de que o único caminho seja este, tampouco que seja este o melhor. Mas que nos estejamos a rir disto tudo daqui a uns anos.