27 de dezembro de 2011

Números de circo


Sei que se ligar o rádio do carro a horas certas, alguém de lá irá dizer-me percentagens entre três e meio e dez, por isso não vale a pena fazê-lo. Também sei que, se ligar a televisão na sic notícias, alguém estará a referir quarenta e duas horas e meia em vez das quarenta, portanto não o tenho feito. Também já não pego num jornal (digno desse nome) há meses, com medo que a capa me grite em letras garrafais outros números como cinquenta por cento do subsídio de natal, ou desaparecimento de décimo terceiro e décimo quarto mês para o ano.
E já vou a poucos fóruns de discussão, porque senão arrisco ler coisas como cinquenta por cento ou menos do valor da hora extraordinária obrigatória.


Estou farto de números.


Não pensem que não sei. Não se precipitem a dizer que tanto me faz. E acima de tudo, não me chamem já de resignado.

É que já não consigo sequer falar sobre isso. Quero jantar sossegado, ir para o trabalho a ouvir música, beber café a folhear um jornal, quanto mais não seja a ver os classificados do correio da manhã. Não quero viver permanentemente na angústia de quem se sente injustiçado. Não me apetece participar no desfiar desses rosários. E acima de tudo, já percebi que, seja qual a posição que tome - contra, a favor, céptico, fervoroso apoiante, neutro - alguém se vai virar contra ela e dizer que sou um privilegiado, ou que falo de barriga cheia, ou que não tenho sentido cívico. Esta é daquelas ocasiões que talvez não deva perder para  estar caladinho.


Fui então beber o café e ler os classificados do correio-da-manhã. Detive-me sobre um deles que anunciava a cedência de quotas num dos colégios mais conhecidos da linha de cascais, mas na altura nem pensei muito sobre o que aquilo poderia significar. E depois fui pedir outro café, que por enquanto mas não por muito mais tempo, custa sessenta cêntimos, e reparei que estavam a tirar cariocas com "terceiras-águas".

Depois lembrei-me que também aqui haverá números a mudar de treze para vinte e três.

Fui pagar, mas à minha frente na fila para a caixa estavam duas senhoras de meia idade, de casaco à laia de vison mas sem o ser.
O senhor foi buscar o pão e o bolo pedidos pela primeira, e quando virou as costas, ela esticou a mãozita e enfiou meia dúzia de pacotes de açúcar no grande bolso.
Fiquei de boca aberta sem querer, mas é claro que não disse nada, e nem tive muito tempo para reacções, pois em seguida a segunda senhora também pediu pão ao empregado, e desta feita foram dois os bolsos cheios de pacotes de açúcar.


Podia falar também das pessoas, com bom aspecto e vestidas sem ser à mendigo ou à toxicodependente, a remexer no lixo deixado ao lado dos contentores, à noite, quando vou passear a cadela à rua.
Podia falar de como o nosso circo está a pegar fogo com os números perigosos que se estão a praticar, com promessas de acrobacias ainda mais arriscadas e impressionantes no futuro.

Mas não me apetece, nem é útil. Vocês já sabem isto tudo.

E por muito que não queira olhar para as cartinhas dos vencimentos ao fim do mês, ou para os jornais, sites, canais de televisão, boletins noticiosos na rádio... quando as coisas sucedem à minha frente, não dá para fugir. E, pelo menos para já, tem sido "só" com os outros.


Não tenho vontade de falar mais sobre o assunto, nem tenho grandes ideias. Mas uma coisa que aprendi é que quando se corta o aporte, provoca-se necrose. Hoje dá a notícia de que cem mil pessoas já emigraram este ano, e as que cá ficam não ficam melhor por isso, antes pelo contrário.
 
Tal como não consigo apontar soluções, também não posso terminar este texto de forma bonita. Apenas posso dizer uma coisa: não estou convencido de que o único caminho seja este, tampouco que seja este o melhor. Mas que nos estejamos a rir disto tudo daqui a uns anos.

16 de novembro de 2011

O melhor céu

O melhor céu já foi em junho e era laranja.

Podia vê-lo filtrado pelos ramos de uma enorme figueira que espalhava por toda a parte aquele cheiro leitoso e doce de Junho. Os pardais faziam um chinfrim de fim de tarde na sua copa, e, embora fossem certamente muitos, só conseguiamos observar uma ou outra silhueta fugaz de vez em quando. Nessa altura, o meu pai aproveitava para apontar a pressão-de-ar. Xu-xu-xu quieto!, soprava ele, de mão muito aberta, palma virada para o chão.

Depois produzia-se um som seco que calava o chilrear caótico e provocava logo um alvoroço que fazia crescer momentaneamente a copa contra o laranja desse céu. E depois eu corria à procura do resultado do tiro, vestido com uns calçonitos curtos, fintando com as pernas arranhadas a vegetação rasteira que atingia metade da minha altura.

Tenho na memória uma cena, era eu ainda mais pequeno, passada em casa da minha tia-avó. Estavam várias pessoas sentadas à mesa numa sala mal iluminada de amarelo deslavado, por uma lâmpada incandescente de pouquíssimos watts; num dos cantos, por cima de uma bancada de cimento, havia um fogão de lenha improvisado entre dois tijolos, dispostos contra a parede enegrecida por incontáveis demãos de fumo.

Naquela casa sempre se comeram coisas muito boas, e dessa vez, estava eu ao colo de não-me-lembro-quem, tinha provado pardalinhos fritos em óleo e alhos. Aquele molho era, até a altura, uma das melhores coisas que eu provara.

Talvez fosse pela recordação desse sabor que nem me assomava à mente a vertente negativa de andar a chumbada aos pássaros.
Ou então era porque estava a caminhar com o meu pai por entre a vegetação rasteira que me arranhava as pernas, e se ele gostava de ir à caça, então eu também gostava.
Ou então porque era pequenino e não sabia o que era a morte, sabendo ao mesmo tempo que aqueles chumbinhos, que até eram moles porque os conseguia esmagar com os dentes, matavam pardais. É para mim fascinante a forma como as crianças conseguem viver bem com tais paradoxos.

Certa vez, um tempo mais tarde durante uma dessas caminhadas, acertámos de raspão num pardal, e demos com ele no chão, ainda vivo. Respirava muito depressa e mal se mexia. Quis pegar nele, mas o meu pai não permitiu.
Apontou-lhe a pressão-de-ar e desfez-lhe a cabeça com outro chumbinho; ele deixou de respirar.
Explicou-me a mim e à minha irmã, que estava connosco dessa vez, que era preciso acabar logo com o sofrimento do animal.
Nunca até então me tinha feito espécie ter as mãos sujas com o sangue dos pássaros que matávamos - a mim, que os carregava sempre enquanto caminhávamos. Por acaso, ou talvez não, essa foi a última vez que fomos aos pardais.

Passei há pouco tempo pelo mesmo sítio e reparei que construiram uma grande vivenda no lugar dessa árvore, que se calhar não era assim tão grande. Já não sei do paradeiro da pressão-de-ar, que, de resto, há muitos anos que não disparava. Chegou por telefone a notícia que a minha tia-avó tinha tido uma trombose e ficara menos bem.
E até estou aqui a pensar que talvez aquele molho dos pardalitos fritos em óleo e alhos não fosse assim tão bom.

Mas do céu laranja, filtrado pelos ramos da figueira, ainda me lembro bem.

Recordo-o certamente muito melhor do que recordaria se o tivesse contemplado ontem.

2 de novembro de 2011

Nostalgia ...


You've got time, you've got time to escape
There's still time, it's no crime to escape
It's no crime to escape, it's no crime to escape
There's still time, so escape
It's no crime, crime ...

29 de outubro de 2011

Sobre a desmontagem de argumentos e telemóveis

Tinha prometido que aparecia para jogar à bola hoje às 8:30h, a uns 15km de casa, e tendo em conta que é um sábado, é preciso dedicação para sair da cama num dos poucos dias em que dá para dormir até mais tarde. Neste caso, é mais do que dedicação. Conta-se uns com os outros para as equipas não ficarem desfalcadas, e ninguém gosta de um cortes.
Estava cansado da semana, deitei-me bastante tarde... mas não eram desculpas suficientes para faltar. Então, fiz o que quase toda a gente faz: pus o despertador no telemóvel para tocar umas 8 vezes, de 5 em 5 minutos.
Já me tinha acontecido várias vezes acordar com o telemóvel desligado, ou sem bateria, ou ter desligado essas 8 vezes o despertador e continuar a dormir... mas hoje aconteceu uma situação inédita: acordei com o telemóvel d-e-s-m-o-n-t-a-d-o! Capa de trás para um lado, teclado+ecrã debaixo da barriga - fiquei com dois telefonezinhos e a palavra "menu" marcados na pele - e bateria debaixo da almofada. E eu lembro-me de desligar o alarme algumas vezes.

É evidente que a divisão de uma pessoa em corpo e cérebro tem pouco de científico, mas desta vez terá de bastar: não deixam de me surpreender os recursos e subterfúgios que um e outro usam para se ludibriar. Normalmente apenas me vêm palavrões à cabeça na altura de acordar, mas desta vez lembro-me de estar a dormir e a assistir ao diálogo entre as partes: Não precisam de mim, têm gente suficiente de certeza! Não faz mal se não for! (o argumento distorcedor da realidade), Mas eu ainda ontem prometi que ia e é falta de consideração faltar, a eles também custa acordar de certeza! (o argumento da honra e do diz-não-ao-egoísmo, um dos mais temidos e respeitados, pelo menos em teoria), Mas eles também faltam de certeza sem avisar, se calhar até chego lá e não há gente suficiente para jogar! (se irem jogadores demais não é argumento, então tenta-se o inverso, juntamente com o remate que as pessoas honradas têm pouca concorrência porque são poucas e o fair play é uma treta), Mas faz-me bem jogar, é divertido, e depois do jogo vou-me sentir relaxado e contente comigo mesmo por me ter forçado a ir (o argumento da saúde com o complemento da vitória sobre a preguiça e a apatia, talvez um dos mais teóricos porque promete vantagens para o depois, o que talvez seja pouco potente perante uma necessidade premente de dormir numa pessoa em sofrimento e de consciência alterada), Mas se calhar nem bola têm, ou o pavilhão afinal está fechado porque é fim de semana antes de feriado à terça-feira, e... aquilo até custa 5 euros! Diz que estás doente, o pessoal compreende! ... Mas!, Mas..., maaas... Adormeci.

E então desmontei o telemóvel.
Não consigo perceber até que ponto é que o fiz involuntariamente, mas não me lembro de o fazer. Não é um gesto de difícil execução, mas requer algum grau de consciência, perícia, e intencionalidade. Pelo menos parte do córtex de integração tem de funcionar para juntar o porquê de o fazer ao como fazê-lo.

Acordei de repente e cheguei mais de meia hora atrasado, o que pode ser, de certa forma tortuosa, considerado como um "meet me halfway", mas fui, e por acaso até valeu a pena.

Fui montando o telemóvel pelo caminho... e ele acordou mais depressa do que eu.



14 de outubro de 2011

É óbvio que o que fazemos tem intenção... e quanto menos armas temos, mais elaborado e sinistro o ataque se mostra. Quando estamos mesmo em desvantagem, somos impelidos a atacar primeiro, de surpresa, o matar para não morrer. Se ficamos o bicho come! Olhamos as nossas tropas em pânico: se somos atacados tudo estará perdido! O inimigo encerra nas suas fileiras forças poderosíssimas!

Bem, sejemos céleres, vamos escolher o onde e quando. Quanto à estratégia, o onde, que seja num terreno sinuoso, aproveitando a nossa agilidade e o facto do inimigo ter a destreza de um transatlântico em frente de um "iceberg". O quando, pela madrugada, quando o inimigo mostra o desgaste de uma noite de vigilia, sendo certo que não esperam o golpe com a nudez das primeiras luzes da aurora.

O ataque vem, assim... Mas vos digo, não estudaram bem o inimigo! Embora tenha o transatlântico transposto o "iceberg" como um atleta que derruba a fasquia, certo é agora que tais transatlânticos vêm com casco duplo! De um golpe, a frágil armada é derrubada. Agora a fugir, o bicho pega.

Ninguém ganhou, mas só um perdeu!