27 de maio de 2010

Figura de corpo ausente

Chego e pouso o casaco. Este tempo em que não está calor nem frio é uma complicação, ainda por cima odeio andar com coisas na mão e muitas vezes aguento o casaco, mesmo com calor. Cumprimento quem está na sala, avisando desde logo pelo silêncio do cumprimento, que não me apetece falar. O difícil é que fui chamado aqui para falar. Estou aqui para resolver esta situação. As partes parecem não se entender e depositaram uma estranha esperança em mim.
Quando me convocaram tentei perceber por um lado o porque da escolha e por outro tentar reverter esta convocatória. Sem resultado, quem toma estas decisões não aceita não como resposta.
Havia uma cadeira colocada estrategicamente entre as partes que deduzi ser para mim, pois além de estar onde estava, era a única vazia. Estava assim no centro da sala, a ser olhado de baixo meio de viés. Este contexto faz-me sentar sem tirar o casaco da cadeira, assumindo uma posição desconfortável, até cómica, em outra situação claro.
Uma das partes introduziu o problema, enquadrou a situação, pôs-me ao corrente e rematou com a ideia que nenhuma das partes concordava inteiramente que fosse eu o melhor intermediário, era assim como a escolha menos má. Pelo menos já sabia porque ali estava, devia-o à qualidade de ser o menos mau entre as duas partes, um sem terra.
A outra parte, acena, agradecendo no entanto a minha presença, apontando para uma taça com alguns bombons. Num segundo olhar lá vejo uns quantos bombons semelhantes a abafadores partidos ao meio, embrulhados na mais ordinária prata colorida. Lembraram-se de mim.
Estávamos nisto quando as partes se calam e esperam que eu faça o que estava ali para fazer. Tinha o casaco enrolado nas costas da cadeira, o que fazia com que tivesse-me sentado muito à ponta, e a posição não era a melhor. Bem, comecei, não me parece uma situação fácil. Pedi dados complementares, estava pelo menos a passar a bola para o outro lado, e enquanto o pau vai e vem, folgam as costas. O problema é que este ir e vir do pau foi curto e logo as costas encaixam outra vergastada. Carambas, isto é que estava ali um imbróglio.
O problema no fundo era de resolução simples, não fosse uma das partes de uma tirania já quase em desuso, fazendo uso da hierarquia e da experiência que não conhecimento, e a outra parte, habituada a não combater gumes com punhos, por artes e manhas, tentava que a cobra morresse com o próprio veneno.
Era fácil, cada um assume o papel, avançamos com isto, que eu tenho de me ir embora, estou mal sentado e ainda não recuperei nem o folgo nem a cor por ter subido vários andares encasacado.
Não podendo resolver a contenda sem apelar ao protocolo, a este apelei. Cada uma das partes teve o momento do admito que errei aqui mas só o fiz porque alguém errou ali. Não foi possível chegar a lado nenhum.

“Adeus tristeza até depois,
Chamo-te triste por saber que entre os dois
Não há mais nada para fazer ou conversar,
Chegou a hora de acabar”

11 de maio de 2010

O meu Deus é um gajo porreiro

Como hoje estou de mal com o mundo, e por ocasião da visita do Bento 16, não queria perder a oportunidade de falar sobre o meu Deus. Vamos por partes.

A primeira parte é que me estou a borrifar para a vinda do Papa. Ou melhor, estou contra. Estou contra terem fechado quase todos os acessos para eu sair de Lisboa depois de um banco, e nenhum dos polícias me conseguiu dar uma indicação sobre como sair. Estou contra não terem feito apenas um percurso para o papa, e deixado os restantes abertos. Nem que tivessem de pôr um polícia em cada ramal de acesso a esse percurso. Afinal de contas, não eram 88000 polícias os destacados para a segurança?
Estou também contra a quantidade de dinheiro que se gastou nesta brincadeira. De cada vez que os nossos quatro f16 levantam vôo, são córenta mil aéreos que vão ao ar. Só porque sim. Nem era necessário, mas ... como podemos! Já para não falar no gasóleo que não sei quantos carros gastaram a dar voltas a tentar sair de lisboa. E resta saber qual é o cachet do papa. É que disso é que ninguém fala.

Tenho vergonha de viver num país que é (constitucionalmente, pelo menos) laico, mas em que 88% da população se diz católica. São muito católicos são.

O que me irrita mais é certos bacaninhos que andam com crucifixos no carro, e andam na faixa da esquerda a 20. Devem pensar: Deus ajudar-me-á a não ter acidentes pois que eu tenho uma cruz de pechisbeque pendurada no espelho retrovisor, e isso faz toda a diferença. Nem que por cada acidente que não tenham, provoquem três. E se alguém faz sinais de luzes metem a manápula de fora assim a fazer um gesto "passa por cima!".

Mas também não me irrita menos aquelas ideias do "ah, se ganhar o euromilhões, prometo que vou a pé para fátima!" ou "que deus te dê no dobro aquilo que me desejas a mim".

Saramago tem toda a razão. A concepção católica de Deus é egoísta, vingativa, interesseira. Eu já pensava isto, e só tenho pena que grande parte das pessoas não o leve a sério e pare para mensar um pouco.

O meu Deus é um gajo porreiro. Não precisa que cortem avenidas, ou que se mandem levantar aviões com o último fuel disponível para o resto do ano. Não precisa de representantes na terra, porque o melhor representante sou eu (e mais quem acreditar nele). E portanto não precisa de 80000 polícias a protegerem não se sabe bem de que ameaças. É verdade que também não precisa que se criem tolerâncias de ponto, mas por outro lado talvez me ensine a usar melhor o tempo livre em vez de fingir que rezo em voz alta para me mostrar o mais temente possível, ou de ir a fátima e obrigar não sei quantos enfermeiros a lavarem-me os pés porque como sou muito temente decidi ir descalço ou de galochas. Mas ei! Levei um ramo que parti ali de uma figueira ao pé de casa a fazer de cajado a imitar o Moisés!

Epá, respeito as peregrinações mas causam-me reboliço nos intestinos.

E depois aquela moda de lhe chamarem santo padre... é outra coisa que me deixa mareado. Santo padre porquê? Por ser o sumo pontífice dos chulos ?

Se as minhas avós vissem este texto ficariam profundamente desapontadas comigo. A verdade é que elas rezam muito por mim para que tudo me corra bem, e uma delas provavelmente até comprou flores e um poster do papa para meter na janela. E eu gosto que rezem por mim.

Vou-vos contar um segredo: estou com estas merdas, mas a verdade é que também eu por duas vezes na vida estive tão desesperado que já rezei. Uma delas, foi numa catedral em Milão, e a verdade é que as minhas preces foram ouvidas. Não sei por quem, mas foram.
E às vezes oro para dentro para o meu Deus, falo com ele, e faz-me sentir melhor.
Quanto mais vivo, vivencio, ouço, vejo, sinto, estudo... mais me convenço de que as coisas são tão complexas que é difícil imaginar que tudo se originou a partir de simples regras da física e da química que tanto amo e com as quais trabalho. Mas da maneira como as religiões contam a história é que tenho para mim que NÃO FOI! Não me venham com tangas.
O meu Deus ouve-me mesmo estando eu calado. Não preciso de dizer améns e comer óstias e andar de joelhos e rezar bxx bxx bxx bxx só para as outras pessoas perceberem que estou a rezar. E se ele tem alguma influência no meu destino, provavelmente é para me mostrar que não devia ter seguido determinado caminho e para aprender com o erro. Não é para me castigar.

Se Deus existe, então escolho que seja um gajo porreiro. Ou uma gaja. Mas isso também duvido. Muito. Mas isso são outros Carnavais.

Quanto ao papa, que se vá embora o mais depressa possível. O bafio do vaticano precisa dele como de pão para a boca.


PS - não quero ofender ninguém. Se o fiz... estão autorizados a não rezar por mim.