Era certo que estava farto de mim mesmo. Das conversas habituais, dos mesmos cafés, das costumeiras ilusões que se auto-alimentam. Mas julgava ter aprendido a viver com as areias movediças e as fogueiras da minha vida. Elas existiam, mas sabia onde estavam e portanto bastava que não me aproximasse muito delas. Podia sentar-me ao largo da chama desde que nela não me imolasse.
Escolhi um dia para não ser quem sou.
Caminhei agradavelmente lado a lado contigo por um ou dois pares de quilómetros, só aquecido pela tepidez da lua redonda e salgado pelas gotículas que se desprendiam das algas e das ondas que empurravam os pontões e comiam os areais. Lá no fundo do horizonte, onde o céu já ficava escuro, irrompeu do nada um fogo de artifício.
- Adoro fogo de artifício - disse eu. E era verdade.
E ficámos a ver as cores e as formas cintilantes lá ao longe, sucedidos pelos estoiros atrasados da pólvora.
- O que eu não gosto no fogo de artifício é o barulho - disseste tu.
Quase observei que muitas vezes devemos aceitar o mau com o bom, mas achei que era um cliché desnecessário. Depois quase disse que o barulho que consideravas mau me agradava a mim, porque parecia que troava no meu peito e me fazia sentir mais vivo. E era verdade, mas achei que ia soar excessivamente dramático.
Até essa altura tinha tentado esconder de mim mesmo que sabia que me tinha partido em dois, e que metade de mim ficou contigo a ser quem querias que fosse, esculpida cuidadosamente para a função.
A outra metade, amorfa e temperamental, já tinha fugido pelo universo inteiro, fugindo do teu cheiro, dos teus cabelos... das curvas do teu vestido colorido, do branco das tuas sandálias... do vermelho das tuas unhas... e incapaz de fixar o olhar em ti por mais de meio segundo.
Foi jogar ténis na terra batida de Marte, que nem se via dali por causa da lua cheia. Nadou em vapores de vinho verde, apanhando bivalves nos dois dedos de líquido que restaram no fundo da botelha. Encarnou um gato que patinhava perigosamente na berma da autoestrada, desafiando o destino certo - tu não o viste porque ias de mãos a tapar os olhos. Percorreu a pé as fachadas dos edifícios de lisboa e os telhados íngremes dos palácios da linha. Foi cada uma das tiras pensativas de um traço descontínuo que ondulava ao aconchego da marginal, engolido devagarinho pelo carro que conduzia.
Foi cada nota da boa música que jorrava do rádio do carro. E trauteava, tentando alhear-se à tua presença, deixando a outra parte de mim fazer aquilo a que se propôs. E essa, que permaneceu à tua beira, ocupava-se numa luta de esgrima de colheres contigo, afogada num mar cremoso de fondant de chocolate.
Tirei o dia para fingir que era capaz de ser quem queria.
E de cada vez que disseste que o tempo cura tudo, mais as duas metades se separavam: uma delas, a que ficou à tua beira, sorria de forma cúmplice num ensaio de diplomacia; a outra, atiçada, gritava da outra ponta do universo que não! que não era assim! que havia coisas que não curavam nem que passassem eons!
Mas, num abraço final, devolveste uma à outra as duas metades de mim, mostrando-me que elas tinham que aprender a viver juntas.
- Até amanhã... - disseste.
- Até... - pensei, surpreendido.
A reunião provocou-me um tremor incontrolável que não me abandonou durante as duas horas seguintes, como se as duas metades não brilhassem por estarem juntas e se recusassem a encaixar.
Porquê a ânsia de fazer cruzar duas linhas paralelas?
ResponderEliminarNeste passeio pelo tempo, ao qual chamamos vida, há pessoas que o atravessam connosco, não para se cruzarem e interromperem a nossa marcha, mas para caminharem do nosso lado, de mão dada.
Sabemos que nunca irão ao nosso encontro, mas não é tão igualmente bom, passear lado a lado sabendo que em cada queda, em cada momento de cansaço, a mão irá puxar para a frente, no sentido ascendente?
Bj.
B.V.
Cara Baronesa Bermelha:
ResponderEliminarIsso que disseste é lindíssimo. A sério que é. E aplica-se a diversas relações na nossa vida.
Estou à espera de um post do amigo Pedro. Ele irá falar do amor, e depois também eu escreverei um texto sobre isso.
O meu conceito de amor vai contra aquele que quase todas as pessoas que conheço têm. Vai ser complicado explicá-lo por palavras, mas vou tentar. E tu... vais cá estar para ler o que tenho a dizer. E nessa altura, talvez compreendas porque é que eu penso que o que disseste não se aplica desta vez...
Muuuuitos beijos :)
Trata-me bem faxavor.
Este, é para mim, o teu melhor texto... ou pelo menos para mim... Só porque me tocou daquela maneira... e continua a tocar... :)
ResponderEliminarBeijinhos