Nos últimos tempos tenho pensado nas coisas simples. Mas não falo naquelas coisas simples que nos dão prazer e que esquecemos - como comer um epá numa esplanada, ou receber um abraço de alguém importante - e que toda a gente diz que valoriza muito e depois estão-se a borrifar. Estou a falar nas coisas básicas, que todos os dias damos como certas. Nós, pessoas saudáveis e pertencentes à tecno-civilização “evoluída”.
Por exemplo, ninguém valoriza a capacidade de ir à casa de banho esvaziar a bexiga satisfatoriamente. E já pensaram como é bom podermos ir ao WC e borrar-nos todos quando a natureza chama? Ou poder comer uns belos secretos de porco preto porque temos a capacidade de mastigar? Ou mesmo de salivar?
Tenho reflectido neste tipo de coisas cada vez mais, à medida que vou conhecendo mais pessoas doentes ou incapacitadas. Claro está que o Homem é, por definição, um ser insatisfeito, e que estando cumpridos os degraus básicos da pirâmide de Meslow temos logo vontade de trepar por aí acima até chegar ao topo. Tenho mesmo muitas dúvidas se alguém lá conseguiu chegar verdadeiramente, mas o certo é que a tendência é a de tentar, e até acho bem que assim seja. Mas é mesmo fácil esquecer a importância dos degraus que ficaram para trás na caminhada.
Na minha colaboração no serviço de saúde pública, durante este mês de Maio que agora finda, tive oportunidade de acompanhar vários profissionais de saúde no desempenho das suas actividades. Ontem calhou acompanhar um terapeuta ocupacional durante o seu dia de trabalho, e eu não o conhecia inicialmente. Logo de manhã, quando entrei no automóvel dele, perguntou-me se eu sabia o que é que íamos fazer, e eu tive de lhe responder, um bocado envergonhado, que não, que só poderia dar um palpite.
Então explicou-me que era o único terapeuta ocupacional do concelho, para não sei quantos milhares de pessoas de uma população fortemente envelhecida, e que parte das suas tarefas era visitar no domicílio pessoas que, de alguma forma, tinham dificuldades ou deficiências nas actividades da vida diária.
Aprendi depois a levantá-la (era bastante mais pesada do que eu) de uma cadeira de rodas, sem lixar as minhas cruzes. É estranho que a maior parte dos profissionais de saúde tenham uma formação muito reduzida a este nível, o que lhes causa invariavelmente lesões e complicações que podem ser graves. É que às vezes basta um truquezinho ou outro para levar a cabo a mesma tarefa de forma segura para nós e para a pessoa que precisa de ajuda.
Estive a pesquisar várias pirâmides de Maslow na internet, e nenhuma delas referia directamente a capacidade de locomoção como necessidade básica, embora ela esteja implícita e TOMADA COMO CERTA quando nessas pirâmides se referiam várias outras necessidades fundamentais do primeiro e segundo degraus (fome, sede, sexo, protecção contra a dor, necessidade de segurança, etc…) e outras de níveis mais avançados.
Quando cheguei a casa, rapidamente me esqueci de tudo isso e nem era para escrever este texto, até porque era dia de ir jogar futebol, que é um dos pontos altos da minha semana. Mas no tal jogo, decorridos 5 minutos, sinto uma dor em facada numa coxa (o meu aquecimento tinha sido mandar uns remates à baliza, com toda a brutalidade que me fosse possível), caio no chão, e abandono o jogo. Fico lá quieto a ver os outros a jogar, a ver se a dor passava, já que nunca me tinha acontecido tal coisa. Passados 10 minutos, pensei que já estava bom, e ao tentar UM passo de corrida (fora do campo, naquela de experimentar) torno a cair, sem força na coxa. Não deu para continuar a jogar, dificilmente consegui subir as escadas para me ir embora, trazer o carro para casa foi uma aventura, mas o que mais me custou foi perceber que não conseguia fazer uma coisa tão básica como vestir uns boxers em pé. Quando se chega a este ponto, começamos a ver a vida a andar para trás.
Hoje já fui ao hospital e ainda não sei muito bem o que tenho, mas imagino. A minha amiga fisioterapeuta tratou de mim com uns ultrassons todos XP, tive que cortar os pêlos da coxa (já não é a minha primeira vez, reconheço…), e agora tenho-a toda ligada. Se me estás a ouvir, Mada, o meu muito obrigado, estou a dever-te um jantar!
Mexam-se! Mexam-se enquanto puderem!