Mas a culpa é toda tua. Durante anos a fio te ouvi a gabar a ginja feita em nossa casa. Dizias que é mais forte, não demasiado doce, e que era muito melhor se fosse bebida gelada. Falava-se também de como o tio x ou o amigo y tinham bebido um cálice de um trago só, contra todas as advertências, como animais de taberna donos de uma rodagem de experiência feita, e que tinham ido a cambalear para casa.
Toda esta história terá, porventura, começado em Alpiarça. Lembro-me daquelas embalagens de plástico translúcido, maleáveis, que se podiam amarrotar e dobrar, mas que podiam conter não sei quantos litros de vinho ou bagaço. E nós íamos a Alpiarça comprar vinho e aguardente, e comer sopa da pedra. E eu ficava muito confuso porque não conseguia perceber como é que se comia uma pedra. E com colher, ainda por cima. Diziam-me que se pegasse numa pedra da rua, polida, e a lavasse muito bem, podia fazer uma sopa deliciosa com ela.
Dessa vez, fomos nós cá de casa, e mais não sei quantos tios e primos. E entre os tais vinhos que trouxeram, lembro-me muito bem de um vinho abafado, de uma cor entre o dourado e o castanho, que era muito doce. Sei que fiquei para trás, e quando vieste à minha procura eu estava a escarafunchar com os dedos e com a boca na torneira de uma pipa de vinho abafado, e aquilo estava-me a saber que nem ginjas. Pegaste-me em peso e tiraste-me muito depressa dali – “é maluco o gajo! apanhas uma piela!”. Eu não sabia o que era ficar bêbado.
Quando chegámos a casa, fiquei maravilhado com a forma como chupavas o vinho por uma espécie de palhinha muito comprida, mergulhada na tal embalagem de plástico que estava no chão, e depois punhas muito depressa essa ponta por onde chupaste nos gargalos das garrafas, em cima do balcão da cozinha. Era assim que engarrafavas o vinho. Na altura eu não tinha quaisquer conhecimentos de Física, mas sabia irracionalmente que as coisas só sobem se as atirarmos, portanto não percebia como é que o vinho conseguia subir para as garrafas sozinho. Mais tarde julguei que tinha descoberto mais uma pista para o enigma, quando percebi que em todos os aniversários, quando se faziam brindes, alguém dizia “Vai acima! Vai abaixo!” com os copos de vinho na mão, ou quando se dizia de alguém que “O vinho subiu-lhe à cabeça”. Entretanto, na primária, aprendi que o Guadiana e o Mira eram dos poucos rios que iam de Sul para Norte, e porque quando somos pequeninos achamos que o Norte fica mais alto do que o Sul, fazia-me sentido que o vinho pudesse subir do chão para a bancada da cozinha. Só muito mais tarde estudei as propriedades de capilaridade de certos líquidos, nas aulas do curso de bioquímica.
Mas é mesmo verdade que esta ginjinha não tem igual para mim. Lembro-me de uma vez ter levado alguma para Aljezur, nas férias do verão; e estávamos no fim de um jantar, eu, amigos, colegas, e outras pessoas que se quiseram juntar, ao ar livre, junto aos fogareiros que tinha estado a usar para grelhar toda a espécie de carnes. De resto, também foi a ver-te e a “ajudar-te”, desde pequeno, que fiquei com o gosto por fazer grelhados. E aprendi que só se põe sal na carne depois de estar meia grelhada, e que se mexe o menos possível com o garfo para não moer a carne ou o peixe. És muito perfeccionista nessas coisas, não és? E há já pelo menos doze anos que sou o encarregado por fazer grelhados para toda a gente no campismo.
Então, apareceram lá os pais de um grande amigo meu do Porto, que só vejo nas férias do verão, e naquele sítio específico. Sempre que me vêem, dão-me cerveja ou aguardente daquela amarelada dos barris de carvalho, de tal forma que venho sempre a cambalear da tenda deles. Portanto, saquei da minha garrafa de 33 cl de água do luso, cheia da nossa ginjinha. Muita gente se riu da pequenez da amostra, mas eu garanti que chegava bem. Portanto, os pais desse meu amigo, já velhos lobos-do-mar da bebida, ingeriram à confiança o conteúdo dos copinhos que lhes ofereci. Passado pouco tempo, foram eles a cambalear para a tenda.
Aljezur sempre teve destas coisas mágicas, que acontecem sem se perceber porquê. É um sítio estranho, igual a nenhum outro que conheça, e por mais anos de férias que lá passe há sempre coisas que me surpreendem. As pessoas falam de maneira diferente, contam histórias e comportam-se de maneira diferente. Eu sei que gostas de acampar, mas nunca acampaste lá comigo. No entanto, durante anos a fio, levavas-me lá de carro e voltavas logo de seguida, e depois no fim das férias ias lá buscar-me, tudo isto porque eu queria levar a minha bicicleta, e indo de autocarro isso era impossível. Não conheço outra pessoa que todos os anos faça duas vezes 600 km só para ir levar e buscar o filho para e do sítio onde ele acampa.
Agora sou eu a pessoa que mais conduz o teu carro. Antigamente conduzia o velhinho Renault 9, que subia montanhas em ponto-morto, que não tinha travões, que não tinha pneu sobressalente, que estava sempre com a luz da reserva acesa e com os pneus carecas. Mas nada disso me preocupava, porque sabia que se acontecesse alguma coisa, eu mandava-te um kolmi e tu me ligavas a perguntar o que se passava, e vinhas-me ajudar. Confesso que não percebo nada de seguros contra terceiros, de colisões, acidentes, acordos amigáveis entre acidentados, chamar a polícia ou não, falar com seguradoras… nunca tive nenhum acidente! E apesar de admitir que não saberia o que fazer se algum dia batesse com o carro, a verdade é que essa sensação de segurança não me abandonou, porque quando eu conduzo nem penso nessa possibilidade. Se algum dia bater, ligo-te e pronto. Mas esse dia ainda não chegou. A coisa mais próxima disso que me aconteceu foi num dia em que estava a conduzir numa estrada muito estreitinha, numa curva manhosa entre casas, e de repente o sol projectou-se através do pára-brisas, arranhado por dentro pelos anéis de uma suposta senhora que limpava o embaciado com as costas da mão, e que tinha sido a dona anterior do carro. E a difracção da luz do sol nos riscos do vidro encandeou-me completamente. Ou isso, ou então parou-me o cérebro; desta vez não foi culpa da ginja. A verdade é que embati com o lado direito do carro numa antiga coluna de pedra, colada a uma esquina de uma vivenda, ligeiramente disposta para dentro da estrada. Parti o eixo da direcção, rebentei um pneu, parti o farol, mas o pisca ainda funcionava. Ainda hoje me posso gabar de só ter batido contra uma pedra. As pedras não se mexem, é mais fácil acertar-lhes.
Claro que telefonei para ti, e vieste ajudar-me. Isto aconteceu em Julho de 2006, e a última viagem que o Renault fez foi dali daquela curva para casa. Mas só consegui mandá-lo para a sucata um ano depois.
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Sempre que me dá uma daquelas brancas de não saber como se escreve determinada coisa, o meu primeiro impulso é perguntar-te. Não é ir ao dicionário, ou escrever essa palavra no Google para ver quantos resultados dá. Sempre fizeste força para que escrevesse bem as coisas, e de cada vez que te perguntava como se escrevia qualquer coisa, tu franzias o sobrolho e dizias: “Como é que achas tu que se escreve?”.
Essas brancas têm-me acontecido com mais frequência ultimamente, por isso tenho experimentado esse primeiro impulso irracional de te perguntar como se escreve. Até quando sonho isso acontece. Fico sempre com uma sensação esquisita. Tal como quando vou na estrada e um otário qualquer num carro à minha frente faz uma coisa idiota, e eu evito o acidente por sorte ou por reflexos, e depois penso no que faria da minha vida se batesse com o carro, e me lembro que agora sou eu que ando com o teu número de telemóvel porque me roubaram o meu e ainda não me apeteceu pedir segunda via.
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Uma das centenas de histórias que me contaste e repetiste inúmeras vezes, passou-se em Angola, quando andaste lá na guerra. Não falas muito nesses tempos. Descreveste-me o calor insuportavelmente abafado que te atingiu quando a porta do avião se abriu em Angola; contaste-me como lá é que valiam a pena as frutas tropicais, e que as mangas que comemos cá não valem nada – tu gostas muito de mangas; e as viagens intermináveis em carrinhas de caixa aberta, por entre carreiros mal abertos no mato, em que chegava a ficar a doer-te na testa, de a franja andar a bater tanto tempo com o vento. Contaste-me que houve um dia de viagem em que não pararam, e mesmo assim não chegou para percorrer na totalidade uma das propriedades de um homem muito rico lá de Angola; essa propriedade era três vezes maior do que Portugal.
Falaste de como apenas andavas armado com a tua máquina fotográfica, e foi provavelmente por isso que a população local e aqueles que Portugal considerava como inimigos te viram de maneira diferente. E talvez tenha sido por isso que um dia eles te avisaram para sair o mais depressa possível de uma vila onde estavas instalado, e então apanhaste o comboio e só mais tarde soubeste que meia hora depois essa vila foi arrasada e ninguém escapou com vida.
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Lembras-te daquela vez em que te fui ajudar a carregar o material de fotografia, para ires fazer um trabalho a Sintra? Recordo que, quando chegámos à casa, não me pareceu nada de especial vista por fora. Mas quando entrámos, pareceu-me um palácio ricamente decorado à antiga, com cortinas de veludo e talhas douradas e bibelots de porcelana. Falaste-me das pessoas para quem ias fazer o tal trabalho. Ias fotografar as jóias de uma senhora já de idade, que era uma importante desenhadora de jóias, com joalherias em Nova Yorque, e dona de minas de diamantes, algures pela África do Sul, se não me engano. De resto, essa senhora só falava inglês, e era de tratos muito finos e doces, muito educada, e gostei mesmo dela. Também lá estava o assistente ou secretário (?) dela, português, impecavelmente vestido com um fato, mas com uma cara e penteado de tal forma suspeito que me levou a perguntar-te: “Oh pai, mas é um homem ou uma mulher?”. E tu riste-te e disseste que era um homem. Mas foi muito correcto connosco, e tratou-nos muito atenciosamente; nada, para além da cara estranha e do penteado escorrido, nos faria desconfiar dele, e deixou-nos sozinhos numa das metades da casa, para fotografarmos umas jóias que, qualquer uma delas, isolada, valia mais do que o nosso quarteirão.
As fotografias eram para um catálogo de jóias, e ao que parece ficaram muito bem, de tal forma que a senhora só te queria a ti como fotógrafo cá em Portugal. Por várias e desconhecidas razões, não fizeste muitos mais trabalhos com ela.
Passados uns bons anos, quando vi a senhora que falava inglês, mais o secretário, na televisão, como marido e mulher, perguntaste-me se sabia quem eram. Eu disse que sim, que era o maricas, o José Castelo Branco… e a Betty. E tu relembraste-me desse tal trabalho que tínhamos feito.
Esta história faz-me lembrar de como o mundo é pequeno, e de como as pessoas mudam. Ou, por outro, de como as pessoas podem ser diferentes em privado e na vida pública. Ou de como as doenças psiquiátricas se podem desenvolver ao longo do tempo. Vou deixar que tu escolhas. A verdade é que nunca me pareceste surpreendido com o desenlace desse tal casal.
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O mito da ginjinha que eu te ajudava a fazer cá em casa foi crescendo, e desenvolvendo-se à medida que eu a partilhava com amigos em sítios e situações completamente insólitas. Lembro-me de uma vez, na praia de Algés, à noite, em que estive com uns amigos a beber dela, e a comer barrinhas de chocolate Kinder ao mesmo tempo. Em outras ocasiões, trouxe balões de laboratório lá da Faculdade de Ciências, e cheguei a enchê-los com ginjinha e a ir para festas com os meus colegas, de tal forma que ainda hoje eles se lembram disso.
Também a forma como eu saí dessa faculdade, após três anos no curso de bioquímica, teve a tua influência pessoal. No segundo semestre do terceiro ano do curso, decidi mandar aquela faculdade às urtigas. Não gostava do curso, as coisas não corriam bem, mas continuei a ir às aulas práticas de laboratório para poder ajudar os meus colegas de grupo. Simultaneamente, comecei a estudar para os exames nacionais, para mudar de curso. Naturalmente, não vos disse nada, nem a ti nem à mãe, porque achava que esses exames iam correr bem, e quando vos contasse já tinha mudado para medicina, e achei que iam ficar contentes. Mas tal não aconteceu. Quando fiz os exames, percebi logo que tinham corrido bastante mal. E como eu não tencionava voltar para a faculdade de ciências, tive que ter uma conversa contigo a explicar-te o que tinha decidido.
Quando te convidei para uma cerveja e para conversar, na rua, de certeza que achaste estranho, porque não era nosso hábito. Mas aceitaste sem pestanejar e sem fazer grandes perguntas. Então, com duas Carlsberg à nossa frente, lá contei o que se tinha passado. Pedi desculpa por não ter dito nada, mas não ia voltar para bioquímica. Ia sair da faculdade, estar um ano fora do ensino superior, trabalhar, dar explicações, e estudar para os exames do ano a seguir, e entrar em medicina, que era o curso que eu sempre tinha querido tirar.
A tua reacção não foi nada dura. Surpreendeste-me mesmo, porque a conversa foi toda em tom de conselho por experiência própria. Não me repreendeste por não ter dito nada, nem sequer me disseste algo como “Então e porque é que não terminas primeiro esse curso?” ou então “E se para o ano os exames correrem mal outra vez?”, que eram frases que provavelmente qualquer outro pai diria ao seu filho. Na verdade, pelo menos no que toca aos exames do ano a seguir correrem bem ou mal, se o tivesses dito terias toda a razão. E eu nem tinha pensado na possibilidade de tornarem a correr mal. Foi, provavelmente, o maior risco que corri.
O que me disseste foi que existe uma idade em que é mais fácil estudar, e que por outro lado não sabias se ia haver dinheiro para me manter na faculdade por todos esses anos. Eu disse que ainda era novo, e que ia conseguir fazer o curso, e que o dinheiro ia-se vendo, que eu podia trabalhar e estudar. E para além disso, em bioquímica, estavam sempre a dizer-nos que não íamos ter emprego, e a minha namorada também era do mesmo curso, e eu achava que se fosse médico, para além de ser mais feliz, ia conseguir fazer com que tivéssemos uma vida um pouco mais fácil.
Disseste-me então, que 6 anos de curso, mais este que ia perder, eram muito tempo. E que a minha namorada entretanto ia começar a trabalhar, e que eu ia andar com os livros atrás. E as coisas iam mudar, que isto do amor e uma cabana não existe. Naquele dia de sol, com as imperiais à nossa frente, tu foste o meu Grilo Falante, e eu fui o teu Pinóquio.
Avisaste-me de forma meiga, e eu, claro, não prestei atenção. Fiz o que queria, o que me apeteceu. Estive um ano a trabalhar, voltei para a escola, para o 12º, para o pé dos miúdos – senti-me como se fosse a conduzir um carro em 5ª e reduzisse de repente para 2ª – depois repeti os exames, tirei dois 20 e entrei. Era um tiro que não podia falhar, e não falhei. E não vou dizer que foi só porque estudei muito – o que é verdade – mas também foi precisa muita sorte. Confiei que estava a arriscar, mas estava a fazer tudo em prol da minha futura vida profissional, da minha realização pessoal, e dos planos que tinha feito para mim e para a pessoa de quem gostava.
Mas no fim, quem tinha razão eras mesmo tu. Fazemos planos e castelos de cartas no ar, mesmo sabendo que é o vento que derruba as cartas. Tomamos certas coisas como garantidas, defendemos o que pensamos com unhas e dentes e raramente prestamos atenção ao que as pessoas mais velhas nos dizem. Avisaste-me da melhor forma que sabias que isso da namorada ia ser um grande problema, e foi mesmo, e muito pelas razões que apontaste: eu, qual Pinóquio, fui mesmo parar à barriga da baleia. Quando somos muito novos pensamos que podemos controlar as variáveis todas e que as coisas só podem correr bem, e correr bem da maneira como as planeámos. Mas às vezes também fazemos coisas certas pelas razões erradas.
Confesso que quando tomei aquela enorme decisão não medi nem metade dos riscos que corria. Quanto ao dinheiro, aí eu tinha razão. Por uma razão ou por outra, nunca tive que abandonar a faculdade, embora em determinadas alturas tenha custado bastante a estabilizar o barco. Foi na base do vamos vendo, devagarinho… e quase sem dar por isso já estou quase no fim do curso. E não me arrependo nem um bocadinho. Mesmo que me arrependesse... ter saudades do passado é correr atrás do vento, como diz um provérbio russo.
Apesar de saber que detestas médicos, nunca me disseste nada sobre isso. Talvez tenha sido por saber disso que só me viste uma vez de bata e estetoscópio.