16 de outubro de 2006

Isto só visto...

"Menina de 14 anos interrogada por ameaçar Bush na Internet

Uma adolescente de 14 anos foi interrogada pelos serviços secretos dos EUA depois de ter publicado algumas ameaças a George W. Bush num site para jovens na Internet.

Dois agentes federais interromperam uma aula de Biologia na escola McClatchy de Sacramento, na Califórnia, para levarem Julia Wilson para um interrogatório que durou 15 minutos.
«Disseram-me apenas que era um crime federal e eu comecei a chorar porque pensava realmente que iam prender-me», explicou a adolescente.
Durante algum tempo, Julia protestou contra a guerra e contra a política de Bush num fórum virtual. A página continha caricaturas do presidente dos EUA e mensagens ameaçadoras, o que converteu a menina em suspeita.
Depois do susto, os pais consideram que os serviços secretos foram precipitados, principalmente por terem interrogado a sua filha sem o seu consentimento."


in Diário Digital.


Sr. Presidente dos E.U.A., é impossível alguém chegar ao seu grau imbecilidade. Parabéns. Atingiu um novo patamar, simbólico por certo, da estupidez. O que é que uma rapariga de 14 anos ia fazer? Obrigá-lo a engolir um tampão sanguinolento?! Torturá-lo com um vibrador nas orelhas?! Ah...não. Deve ser uma rapariga com um "cinturão taliban". Só pode. Espera...mas ela desatou a chorar? Aquela malta da CIA deve ter um impressionante hálito a cebola, porque as meninas-ameaçadoras-com-bombas-na-cintura não se deixam torturar! Não senhor! Elas resistem a todos os tipos de tortura...incluindo o programa matinal da TVI. Não haverá problema em gastar recursos para esta exaustiva investigação! Mais um passo dado na luta contra o terrorismo.
Enfim, comentem esta notícia ridícula. Sei que alguns dirão "Ei...mais do mesmo?!".

15 de outubro de 2006

I might be wrong VII - Mal dispostinho!


Acordei assarapantado, como sempre. Vesti duas peças de roupa caídas no chão, peguei nas coisas para as aulas - chave de casa, carteira, telemóvel quase sem bateria - meti um bocado de pão seco à boca e saí de casa a correr para apanhar o autocarro. Ainda pensei em descrever um pouco mais aqueles momentos em que saí da cama, e talvez inventar um bocado, mas decidi não o fazer por dois motivos: primeiro, não corresponderia à verdade. As minhas manhãs antes de sair de casa são todas iguais, e não são muito mais do que já contei; segundo, porque o Nuno Markl já me roubou a ideia, e com ele não se brinca.
Na verdade, o Markl faz-me lembrar manteiga de amendoím. Boa, muito boa ao início, mas se a comemos directamente do frasco e à colherada, vai chegar uma certa altura em que já não conseguimos sequer salivar; por outras palavras, já estou mais do que enjoado da voz do gajo. Na sic comédia, é ele quem faz aqueles interlúdios entre os programas (veja isto, veja aquilo, etc...), e sinceramente já irrita um bocado. Já sei que muita gente me vai partir a cabeça por estar a dizer isto: "ai, coitado, ele tem muita piada e aquela barba e óculos ficam-lhe a matar! E a maneira como ele acaba as frases, com aquela entoação?"...

Bem, saí de casa e afinal não estava atrasado. Na verdade até estava mais adiantado do que seria agradável tomar conhecimento. Ou seja, fiquei na paragem 20 minutos, o que é um dado novo, visto que eu tenho sempre que correr atrás do autocarro, ultrapassá-lo uns bons 100 metros até à paragem seguinte, meter-me à frente dele para que o condutor se decida a parar. Mas não desta vez. Desta vez antecipei-me, não me escapa.

As nuvens estavam algo negras quando saí de casa, mas como não houve tempo, não trouxe guarda-chuva. Bom, em abono da verdade, eu nunca levo guarda-chuva, detesto guarda-chuvas e tenho raiva de quem usa guarda-chuvas. Aquela ideia do "homem prevenido vale por dois" dá-me a volta ao estômago e aos intestinos, pá, não sei explicar mas dá. No nosso país os índices pluviométricos são dos mais baixos da europa. Toda a gente come chouriços de trás-os-montes, fuma e bebe que nem cavalo, tem sexo o mais desprotegido possível, mete-se em solários provenientes de Chernobyl, mas ei! O que é que pode correr mal? Eu trouxe um guarda-chuva! Homem prevenido vale por dois! Pelo menos não me chove em cima e por isso vou viver até aos 100 anos. Ainda por cima aquela merda num autocarro pode ser uma arma de destruição maciça. Mas nem vamos por aí, senão tinha de falar nas gajas que usam sapatos com aqueles bicos à frente, que me fazem lembrar aqueles postes nas proas dos navios de antigamente... e que têm contratos com clínicas de ortopedistas para os usar - a incidência de traumatismos localizados aos tendões de Aquiles nos transportes públicos deve ter aumentado dramaticamente quando alguém teve a infeliz ideia de idealizar moda tão ridícula. Depois dizem que têm joanetes. Eu por mim tanto faz, não sou eu que lhes vou pôr algodõezinhos com antifungicos nos espaços entre os dedos.

Voltado ao guarda chuva. Infelizmente, a senhora que estava ao meu lado à espera de um autocarro que eu presumi ser o mesmo que eu (visto que passaram autocarros com os números 1, 22, 43, 12, 125, do 300 até ao 750 inclusivé, e ela não se foi embora) não era da mesma opinião, e envergava um guarda-chuva que fazia inveja à pala do pavilhão de Portugal, do Siza Vieira. Para piorar um pouco as coisas, ela achava que não estava suficientemente protegida, de maneira que ocupou o único lugar que restava por baixo da cobertura da paragem.
Quando as equipas da protecção civil já estavam nas ruas a salvar cãezinhos e ovelhas com helicópteros, e as correntes selvagens formadas pelo dilúvio arrastavam cofres de bancos, pianos, jipes, e eu já estava assim a modos que um pouco molhado, a tal senhora vira-se para a outra ao lado e diz: "Parece-me que hoje é capaz de chover!". Mas eu não fiquei muito chateado com as palavras da doce senhora.
Entretanto o autocarro chegou e eu corri logo para a entrada, antecipando-me à Liedson. "Ah, pois, já não há cavalheiros!", ao que eu respondi "Oh minha cabra de merda, estou aqui todo molhado e ia estar à espera que entrasses e pagasses o bilhete com moedas de 5 cêntimos, e até o homem contar as moedas todas já eu tinha encolhido com tanta chuva!? Achas mesmo?".
Claro que não respondi isso à senhora. Limitei-me a ficar calado e a deslizar para o meio do autocarro, pois que já não havia lugares sentados. Mas para a senhora, claro que se levantou logo um senhor já muito idoso, com um andarilho, grávido, com um puto ao colo e ceguinho! - "Minha senhora, sente-se, sente-se!", "Oh, não, então? Deixe-se estar, deixe-se estar", enquanto se ia sentando "muito obrigado senhor, dê cá o andarilho que eu guardo-lho, que cavalheiro. E que criança adorável que aí tem...!".
Pouco depois, enquanto eu utilizada o molhado da chuva para pentear o cabelo, e fazia o ritmo de uma música com o barulhinho chloc!chloc! que saia dos meus ténis alagados, essa senhora virava-se para a do lado e dizia "não sei porque é que se faz tanto trânsito de manhã! Eu trabalhei a vida toda, sempre fui de transportes para lisboa, e sempre me apresentei com fatiota impecável! Impecável! Ninguém diria que eu ia de transportes! Ia sempre mais arranjada que a patroa!".

Um bocado depois, deixei de ouvir a bondosa senhora, visto que a poluição olfactiva conseguiu superar a auditiva. O conjunto de diferentes cheiros e aromas dentro daquele autocarro, com gente que ia pegar no trabalho às 9 da manhã, era claramente dominado por 3 tipos de tendências. Havia as senhoras de idade, que não sei o que é que estavam ali a fazer àquela hora todos os dias - não estão reformadas? Não têm napronzinhos para fazer? - que contribuiam com o cheiro exagerado a sabonete e a laca para o cabelo, tão clássicos e que decerto povoam a memória da juventude de muitos. Havia também as mulheres dinâmicas com fatiotas mais formais, mas em cujos pescoços e atrás das orelhas (e no decote, porque mulher prevenida vale por duas, e aqui duas é o número que se repete), se reparássemos bem, tinham lá sprays borrifadores engenhosamente ligados por um circuito a um depósito de meio litro de perfume de uma marca qualquer da moda, comprado numa barraquinha de uma feira qualquer da moda;
provavelmente o circuito completava-se com uma ligação via ondas de baixa frequência aos seus telemóveis, de maneira que quando passassem por alguém, ou quando estivessem numa multidão (como era o caso) poderiam sempre sobressair, não fosse o rapazinho giro que elas tinham catrapiscado na outra ponta do autocarro ser impedido de reparar nelas. A última tendência era encarnada pelos homens com aqueles desodorizantes terríveis. Eu confesso, não uso desodorizante. Se calhar é por isso que ninguém se senta ao meu lado nos transportes públicos: nem que estejam a abarrotar há de haver sempre uma cadeira vazia - a que está ao meu lado. Aposto que nem o homenzinho de andarilho se sentaria lá. Mas pelo menos não uso desodorizante terrível. Terrível, meus amigos... Deus ma pardoe! Antes com água-rás.

Bem, lá chegou o autocarro a lisboa. Apanhei o metro, e comecei a reparar nos cartazes das estações. O primeiro que vi foi sobre a música no coração, o novo musical do La Féria. No Destak, lá vinha ele na capa todo contente com aquela pose só ao alcance dos grandes génios encenadores: "o meu melhor musical de sempre!". Aposto que sim. Com a Lúcia Moniz e a Anabela lá a fazer de preceptora dos putos, deve ser de rebolar a rir. O que é que pode correr mal? Ai, La Feria, La Feria, amigalhaço... deves estar pouco rico à pala do pessoal que tem a mania que é culto e vai ao teatro ver as tuas peças de revista. E dos subsídios do ministério da cultura, claro está! É como tirar um doce a uma criança, e ele tem umas 500 para este musical! Eu quero ver é quando se acabarem os clássicos! Porque Lúcias Moniz e Anabelas... dá-se um pontapé numa pedra da calçada e saem lá de baixo 500 por ano. Eu tenho alguma pena é dos miúdos. Acho que não há pior razão para o abandono escolar em tenra idade do que participar num musical do La Feria.

Pouco depois, numa outra estação, lá estavam meia dúzia de cartazes publicitários a falar no Wall Street Institute. O slogan realmente é uma pérola do marketing: "Learn English. Live Life. Desde 79€ por mês". Pronto, agora que já fiz publicidade, sinto-me no direito de dizer mal: epá, que slogan tão fateloso! Está-se mesmo a ver que foi escrito por um gajo a fingir que era inglês ou americano ou coisa assim do estilo, com a mania que era criativo de marketing só porque faz rir as tias nos almoços de domingo lá de casa, e que é primo ou sobrinho ou afilhado de um gajo qualquer da empresa. Primeiro que tudo, analisemos a sintaxe: Aprenda inglês. Learn English. Não consigo imaginar um americano ou um inglês a dizer "learn english"! Assim de repente não me estou a lembrar de como escreveria um inglês uma coisa assim do género, mas ninguém me convence de que foi um gajo que pegou na frase "Aprenda inglês" e a traduziu à letra. Parece aqueles panfletos dos parques de campismo ou então os restaurantes das zonas turísticas, com um inglês muito manhoso! "Drink Tea!", "Eat Chocolat!"...
Em segundo lugar, revejamos o conteúdo: Aprenda inglês... viva a vida. Pelo amor de deus, viva a vida? Epá, o pessoal tem transportes públicos da merda, sofre com os impostos, os internamentos hospitalares agora vão passar a custar 5€ por dia (não vamos por aí, senão não me calava...), mas se tivermos umas aulinhas de inglês, ah pronto, assim 'tá bem! Já vamos poder ser felizes e cosmopolitas e dizer aos fins de semana coisas como "carbon and sardines!"
Isto se sobrar dinheiro para o carbon e para as sardines. Aposto que me vão ensinar a dizer lápis (pencil), janela (window), mesa (table), cadeira (chair), e já me estou a imaginar a gritar entusiasticamente em coro, com os meus coleguinhas pouco letrados: WIN-DOW! TA-BLE! E pronto, estaremos prontos a enfrentar o mundo selvagem e a viver a vida como deve ser. Tudo graças ao Wall Street Institute.

Mas no metro eu via montes de gente agarrada ao telemóvel e a falar. De início pensei: que gente tão estúpida, é do vício, estão tão habituados a tagarelar ao telemóvel que agora até já ensaiam, uma vez que aqui no metro (sim! pelo menos aqui!) não há rede. Puro engano. O último santuário, o último triângulo das bermudas, o último coito (não é esse, seus malandros! é o das escondidas ou da apanhada, ou lá o que era! Não me digam que não se lembram!) das ondas electromagnéticas fora profanado. Um gajo agora não se pode encostar à janela do metro sem que haja uma gaja qualquer com uma boca de onde só sai merda aos jorros... convencida de que a
sua conversa é, mais do que digna, indispensável aos restantes passageiros do metro inteiro. Aposto que as pessoas que vão a atravessar ruas nas passadeiras, uns quantos metros de betão armado acima, conseguem ouvir estas gajas. E são muitas... e multiplicam-se...
Bem, pelo menos já há alguma alternativa ao Destak e ao Metro. Mas é mais do mesmo. O metropolitano é um veículo que transporta, para além de pessoas, muito, muito lixo. Não que os conjuntos "lixo" e "pessoas" sejam mutuamente exclusivos! Nada disso. Mas estes jornais atacam as pessoas no período em que elas são mais vulneráveis, e acho que não estou a ser demasiadamente delirante se pensar numa teoria da conspiração do tipo "ah e tal, ELES sabem
que de manhã estamos a dormir, 'bora lá dar jornais deformadores da opinião pública". E depois vêm pérolas como a entrevista do La Feria, os signos mais parolos do mundo, ou uma que li já não sei bem em que contexto, mas que jurava a pés juntos que o triptofano é uma proteína muito consumida. Sim, porque para estas pessoas um tijolo é uma casa. Uma andorinha é uma primavera. Um bibi é uma Bélgica.

Para finalizar a minha manhã (porque se chega facilmente depois do meio dia às aulas se se for nos transportes públicos certos, na manhã de chuva certa), antes de sair do metro ainda surpreendi uma conversa entre dois gajos, todos fatinho Armoni (Armani não é para todos...) e malinha de executivo, a falar da microeconomia. Curiosamente, ambos tinham aquela carinha de advogado fuínha, sabem? Assim de cabelo que nem é curto nem é comprido o suficiente para andar com um rabo de cavalo. Assim tipo... aquele gajo que defende os filhos da puta todos deste país, benza-o deus! Estoira-me a cabeça, este menino! Mais facilmente via a Fátima Felgueiras a defendê-lo a ele em tribunal do que o contrário. Essa bela senhora que eu acho que devia ser a procuradora geral da república.
E fez-me lembrar, obviamente, esse grande comentador, Nuno Rogeiro. E a conversa metia coisas como "ah e tal o que falta é o poder de compra, o poder de compra para aqui, o poder de compra para ali, e as taxas de juro sabes como é, qualquer dia já nem dá para dar entrada para meia dúzia de ovos, nem às PRESTÁÇÕES, porque as PRESTÁÇÕES estão muito altas, e as exportações bla bla" - eu sinto-me obrigado a lembrar que a palavra "prestações" não leva acento, e que detesto a expressão "poder de compra". Detesto. Acho que é uma palavra muito usada por quem não percebe nadinha de economia, nadica de nada. E é sempre usada por quem não tem dinheiro. Mas não por todas as pessoas que não têm dinheiro, é só por um subgrupo de 80% dessas todas - aquele constituído pelas pessoas que dizem mal dos ricos apenas e só porque não são elas a ter "poder de compra". Mas depois adoram ir para casa e ver novelas do tipo "Os ricos também choram". Se a inveja matasse não havia efeito de estufa! Deus ma pardoe...
Vou é a minha vidinha, que alguns de nós têm de trabalhar...

13 de outubro de 2006

Sem título *



* Este foi um texto pedido pelo (in)excelso professor de oncologia. Dado que o s' TÔR nem sequer vai lê-lo e como não gosto de trabalhar para as paredes (já segurar nelas é outra coisa), deixo este post para quem quiser ler :)

A escolha de um caso clínico particularmente marcante reveste-se sempre de alguma dificuldade, sobretudo se estivermos a pensar em doenças oncológicas. A doença, em sentido lato, é composta essencialmente por duas dimensões – a física, que contempla os mecanismos fisiopatológicos e respectivas alterações orgânicas; a humana, que diz respeito à influência psicossocial exercida no doente e nas pessoas que o rodeiam. Ainda que ambas se complementem e sejam, diria mesmo, indissociáveis, a vertente humana é, em meu entender, a que maior carga emotiva confere a uma história clínica. Desta forma, deixarei os mecanismos de doença um pouco à revelia deste texto.
Na condição de jovem estudante de medicina, ávida de conhecimento, doentes e doenças, esqueço muitas vezes que diante de mim não existem apenas músculos, ossos, órgãos e vasos. Se assim fosse, bastariam meros rudimentos de anatomia, fisiologia e clínica para envergar uma bata branca e um estetoscópio. Ser médico está para além do saber científico que de forma imberbe teimo em colocar num plano superior.
Durante o estágio prático de hematologia (4º ano), chegou à consulta uma jovem, S.M., acompanhada pelo pai. Ambos traziam um brilho no olhar e a euforia de quem acabara de receber a informação da existência de um dador compatível de medula óssea.
S.M. era uma doente de 27 anos com leucemia mielóide aguda (LMA) e com indicação para transplante de medula óssea. Tinha sido saudável até ao despoletar da doença. Acabara a licenciatura e preparava-se para fazer uma pós-graduação. Contudo, de forma súbita, o seu percurso direccionou-se para o IPO e para a luta que diariamente viria a travar. De repente, todos os projectos deixaram de fazer sentido, a vida era uma causa perdida.
Na fase inicial do tratamento sentia-se vencida e mal conseguia reagir àquela doença que, de forma insolente, invadia o seu corpo. Perguntava frequentemente a si própria a razão e o porquê de estar naquela situação, sentindo-se injustiçada e revoltando-se contra os entes mais próximos.
Durante o internamento e tratamento, o contacto com outros doentes, por vezes até mais jovens do que ela, foi preponderante para a sua mudança de atitude, fazendo da esperança uma fonte de força e determinação para combater aquele estado de saúde que a debilitava cada vez mais. Cada biopsia medular passou a ser encarada como apenas mais uma e aquilo que inicialmente parecia impossível, tornava-se realidade. Dedicou-se aos estudos, conseguindo completar a pós-graduação – autêntica prova de motivação, esforço, empenho e vontade de viver. Dos episódios de internamento destaca-se, pela sua importância clínica e prognóstica, o desenvolvimento de infecção respiratória baixa por Aspergillus sp. com pneumectomia subsequente.
No dia da consulta (anteriormente referida), depois de tanta incerteza e angústia, S.M. vislumbrava uma solução para o seu problema. Sentia que de alguma forma poderia voltar a nascer e recuperar o tempo que a doença furtara. Tanto ela como o pai e o resto da família, cujo incessante apoio em muito contribuiu para a forma activa com que passou a encarar a doença, depositavam grandes esperanças, senão todas, no transplante. Não obstante a importância de tal procedimento, as notícias da médica assistente viriam a frenar aquela alegria. Antes de mais era preciso fazer ainda alguns testes de compatibilidade, embora tudo indicasse que o dador seria aquele, e era preciso cuidar da infecção fúngica, dado que a intensificação da imunossupressão devida ao transplante poderia agravar ainda mais aquela infecção. Vistos os riscos e os benefícios, era quase certo que S.M. iria ser submetida a transplante contudo, as hipóteses de sucesso rondavam apenas os 30%.
Enquanto assistia à consulta e à medida que a euforia inicial da doente ia esmorecendo, fui forçada a conter as lágrimas ou qualquer outra manifestação de tristeza. Nunca dantes tinha sido tão difícil sorrir para alguém, numa atitude apaziguadora de dádiva e esperança. Procurei ser forte e utilizar os tão aclamados mecanismos de defesa. Pela primeira vez senti que diante de mim estava um ser, cuja confiança quebrava os limites da própria evidência médica. S.M. considerava aquela fase da sua vida um interlúdio – o futuro seria ainda melhor do que o passado.
Acabada a consulta de S.M., outros doentes e outras doenças chegaram até mim de forma insidiosa e ténue. Naquele dia parecia que mesmo que me acontecesse algo de muito grave, nada poderia ser pior do que a situação de incerteza que S.M. e a sua família enfrentavam.
Ao final da manhã, a médica assistente fez uma espécie de visita guiada ao serviço. Foi então que vi de novo S.M., durante uma sessão de quimioterapia. Tinha tirado a cabeleira postiça que levara para a consulta e podiam então observar-se várias equimoses no seu corpo. Se a identidade de uma pessoa fosse determinada exclusivamente pelo aspecto exterior, diria que quem ali se encontrava não era a S.M. que aparecera uma hora antes na consulta. Apenas o sorriso sofrido e humilde se mantinha, não ousando sequer quebrar a esperança que nela germinava e fortalecia diariamente. De mão dada com o pai, que guardava para si o medo da incerteza, transmitia a confiança e coragem plenas dos que já experimentaram a dor e que, conhecendo a efemeridade da vida, empreendem toda a sua força na luta contra a doença.

Quando passei os portões do hospital, o sol ainda brilhava e o céu azul era convidativo. Decidi caminhar um pouco para espairecer, contudo, aquele quadro permanecia nos meus pensamentos. Os sinos certamente dobravam por mim, não me referindo à morte mas sim ao momento que marcou o meu despertar para a perspectiva humana do doente, tão discutida nas cadeiras da faculdade. Os mecanismos de defesa não estão em nós a priori, devendo evoluir a partir de um conjunto de experiências como esta. É impreterível perceber a vida em toda a sua essência e escutar aquilo que razão muitas vezes procura esconder.