30 de junho de 2006

Guerra - Cap I

Embarcou à três meses mas só ontem recebi a primeira carta. Diz que está bem, que a comida é boa, mas faz muito calor. Está bem, e come bem e isso é que importa e que Deus nosso senhor o proteja e guie.
- Ai está bem? Isso é que importa, uma guerra onde se come bem, embora com algum calor – acenando a cabeça o merceiro põe as compras numa cesta. Embrulha bem meia dúzia de ovos em papel manteiga e passa o cordel pelo embrulho com duas postas de bacalhau alto, do bom para grelhar – deve até dar para ir a banhos!
O senhor Augusto por acaso não está a fazer troça da dor duma mãe? É que se for esse o caso deixe que lhe diga que faz muito má figura! Como até um parvo vê, agarro-me ao que de bom tenho.
- Dona Maria Teresa, por acaso eu troçaria com a dor duma mãe que vai ao cais das colunas ver o único filho, arrancado das carteiras da escola industrial – e bom aluno se dizia ser -, partir para o ultramar sem regresso certo? Mas olhe, agarre-se bem, não vá correntesa a baixo.
O cesto foi arrancado ao balcão e restolhado pelas sacas de cereais que se dispunham até à saida, tão veloz que deixou uma nuvem de pó por assentar. Augusto vem à porta compor as sacas no seu passo calmo e decidido, sempre com uma vassoura na mão, caso o pó volte ou algum pilantra lhe esteja a galar as résteas de cebolas e os caracóis que estão à porta.

Andaste a chatear mais uma mãe que deu o filho ao prego? Augusto, Augusto...
- Olha lá, não devias estar ali em Santa Apolónia a pedir esmola aos que chegam, já que os que partem ou vão sem esperança ou sem dinheiro? És cego, és cego mas é para o que te cheira!
O Dr de S.José disse que eu era invisual, cego é uma parte da tripa! – e vá de se sentar numa saca de cevada por encetar que estava por ali á mão. Eu também ia ás sortes se Deus nosso senhor me tivesse destinado a ver.
- Assim destinou-te a pedinte na estação de Santa Aplónia. Mas pelos vistos já podes comandar batalhões, foste promovido a invisual! Isso até faz uma bela rima com General, General invisual! Não parece muito longe da realidade – por breves instantes pousou a vassoura mas logo a energia de mercieiro o tomou – vamos mas é a levantar dai o traseiro que isso não é uma espreguiçadeira.
Bem se aqui está, com a brisa do Tejo e mesmo defronte para a estação. Mas tens razão, chega de cobra, vou mas é ganhar a vida, a ver se chega para a bucha. Augusto atirou um papo seco para o colo do ex-cego agora invisual e começou a varrer energicamente, como se tivesse de varrer a esmola. Varria com tanto empenho que nem notou o reboliço que se formara à frente da estação, onde militares e polícias corriam em todas as direcções, vasculhando todos os cantos e todos os carros. Quando a nuvem de pó assentou, Augusto vislumbrou agentes a virem em sua direcção, que mais pareciam atiçados tal era o passo. Que venham, tudo o que leio alimenta a caldeira, tudo o que não leio não sei.
Boas tardes, precisamos de entrar na merceiria, com licença! – a educação não costuma faltar aos agentes da polícia agora aos do exército não constava que fosse item prioritário na sua formação.
- Precisam de alguma coisa? Em que os posso ajudar? – perguntou Augusto pousando a vassoura não vá o diabo tecê-las e a fiel amiga ainda se virava contra ele. Não obteve resposta.
Bom dia sr Augusto – saudou o habitual agente Palha, Zé Palha para quem entrava no seu círculo de amigos – andam à procura dum mancebo que fugiu, acho que ainda por cima é comuna ou como é que se chamam esses diabos. Chegaram de Santarém para embarcarem para a Guiné e o sacana escapoliu-se, evaporou-se melhor dizendo! - esticando o dedo como se tivesse a leccionar a mais preciosa matéria do alto dum estrado.
- Compreendo, não quer ir a banhos? Se calhar não gosta da praia, ou é mau de boca, muito embora a comida no Ultramar seja boa.
Como sabe disso? Já lá esteve?
- Não, não, chegou-me aos ouvidos, acho que é o que os nossos soldados mais escrevem nas cartas para casa, que está calor por lá mas come-se bem. Se calhar devia mudar o negócio para essas paragens, até gosto do calor e comer bem também não me custa.
Um homem alto de bivaque saiu da merceiria. Aparentava uns robustos 30 anos e tinha traços sizudos e fechados. Abeirou-se dos dois homens que pacatamente trocavam palavras à porta da loja e avisou Augusto que se visse algum mancebo fugido, ou se soubesse de alguma coisa para avisar as autoridades competentes sob pena de ser acusado de ocultamento e colaboração com um desertor. Sim senhor saiu da boca de Augusto em coro com o agente Palha, que não ficou indiferente ao peso de tais palavras. Meio embaraçado saiu despedindo-se com um aceno de cabeça e com um já sabe, se vir qualquer coisa de suspeito... Augusto respondeu-lhe com um vá descansado. Pegou na vassoura e voltou para dentro que aquilo ali fora era um mar agitado demais para a sua barca.
Estes tipos são mesmo intragáveis, pobre rapaz, espero que já esteja bem longe daqui são e salvo. A trabalheira a que eles se dão por causa dum pobre rapaz que só quer que o deixem na escola e jogar à malha. Vou mas é por as pipas à porta que o comboio do Cartaxo deve vir a horas e depois fico sem vinho. Galgou dois degraus e abriu a porta das traseiras, reparando que havia pó no ar. Começou a desarredar as pipas e a deitá-las pois vá lá um homem carregá-las doutra maneira que não seja rebolando. Estas aqui estão vazias, gastei-as primeiro para agora não ter trabalho a desarredá-las, o método vence sempre. Nem sempre. Mas que inércia tem esta pipa vazia, que ar tão pesado é este, bolas! Tenho a certeza que a gastei, deixa-me a lá virar. O peso da pipa ultrapassou o ângulo limite que a faria estar em equilíbrio e rebolou como não devia, contra a parede, fazendo soltar um som abafado.
- Bolas, isto quando corre mal, corre mesmo mal, irra! Só me faltava uma pipa rachada, e o comboio aí a vir! A força que teria de dispender para tentar erguer a pipa parecia-lhe sobre humana, mas que raio de enguiço será este agora, é a paga por zoar das mães orfãs de filhos. Ladeou a pipa e reparou numa mancha de vinho na face que tinha ficado para cima, que estranho, mas o vinho sai pelo topo? Mas isto não é vinho, e ao abrir a pipa viu que o peso desta afinal não era devido a um ar mais pesado.

6 de junho de 2006

O recorte do contraste


Quando Lázaro entrou naquele hospital, não conhecia ninguém. Apenas tinha falado com o responsável dos recursos humanos sobre a sua transferência; tinha querido alugar uma casa por um preço mais razoável, mas para isso fora obrigado a mudar também de local de trabalho, razão bem compreendida e aceite pelos seus patrões.
Tentando conhecer os cantos à casa, percorreu os corredores do local onde iria trabalhar nos próximos tempos. Nada de muito diferente de qualquer outro hospital, de resto. Corredores com gente apressada, gente à espera, gente a gemer, gente a dormir em macas, garrafas de soro por todo o lado. As paredes amareladas, nuas, estéreis, com um silêncio de estética apenas interrompido por uma ou outra racha no estuque antigo, delimitavam um espaço que, embora considerável, era manifestamente pequeno para conter o sofrimento de uma parte tão grande da população.
Lázaro defendia a opinião de que estas paredes eram inimigas dos doentes, e não estavam lá para os ajudar a curar mais depressa, mas sim para evitar que a dor contaminasse o exterior, onde as pessoas deambulavam e levavam as suas vidas de forma insuspeita. Não tinha grandes estudos, mas, como qualquer outra pessoa, sentia-se influenciado pelas formas e pelas cores; sabia que sem muito esforço e com pouco dinheiro seria possível transformar estes locais em sítios mais acolhedores, mais familiares, de forma a que quem estivesse doente se sentisse menos abandonado e mais centrado na sua própria recuperação.
É claro que pouco estava nas suas mãos, mas...
*
Passadas algumas semanas, Lázaro conhecia as caras das pessoas com quem trabalhava diariamente. No entanto, poucas eram aquelas que lhe davam os bons dias. Não obstante, continuava a desempenhar a sua função de forma dedicada. Fazia recados aos médicos... varria e encerava o chão das enfermarias, despejava constantemente os vários contentores dos mais diversos lixos hospitalares, supria as necessidades e os stocks. Acreditava que esta sua forma de trabalhar era a maneira mais eficaz de tornar os serviços eficientes, e mesmo num sítio feio como aquele as coisas poderiam tornar-se muito piores se não houvesse material ou se as salas estivessem sujas.
Certa vez, enquanto limpava o vidro da janela de uma enfermaria, reparou numa mulher jovem, muito bonita, de bata branca, pasta preta na mão e estetoscópio aos ombros. Nunca a tinha visto por ali antes, e ela estava agora a falar com uma senhora numa cama, que ele sabia estar internada há meses. Conseguia ouvir parte da conversa, mas não prestou atenção às palavras. Apenas notou que o tom de voz daquela médica era muito diferente do dos outros médicos: mais atencioso, mas um atencioso verdadeiro, sem parecer aquele atencioso profissional, mecânico, cínico, viscoso e em voz alta que já conhecia tão bem. E sorria... com um sorriso tão bonito que arrancava também um sorriso à doente. Não um sorriso subserviente, medroso, como os doentes que têm medo de irritar os médicos e pensam que talvez sendo simpáticos lhes conseguem mais atenção.
De facto, Lázaro percebia isto muito bem, porque falava várias vezes com os doentes, e estes também sorriam daquela maneira, talvez por saberem que ele era apenas um auxiliar, que estava ali a falar com eles porque lhe deu na gana, e que não tinham de ser simpáticos e subservientes da mesma maneira...

Aproximou-se, de pano e Ajax na mão, e sorriu para elas. Com elas. Já conhecia a doente desde que tinha começado a trabalhar, por isso a conversa estabeleceu-se com espontaneidade. Ficou a saber pela bata que a jovem médica se chamava Lurdes, um Lurdes escrito a letra desenrascada com um marcador azul, grosso. E a Lurdes era tão afável que rapidamente a conversa os tomou aos dois, enquanto a doente adormecia calmamente na sua cama. Já estavam ali há 10 minutos, mas para Lázaro os ponteiro do relógio colocado estrategicamente à porta da enfermaria não tinham saído do mesmo sítio. Mais ninguém tinha ficado doente no mundo, não havia medições de pressão arterial a ocorrer, nenhum enfermeiro estava a escrever os relatórios de turno... até que a Lurdes, que morava em Massamá com os pais, que tinha um Mercedes Classe A, que tinha feito o curso em Lisboa, e que tinha a bata com os botões desfasadamente enfiados nas casas da bata, disse que tinha que ir almoçar. Lázaro ainda pensou em convidá-la, mas as palavras não lhe sairam da boca em tempo útil.

Desde esse dia, ia trabalhar ainda com mais vontade. Levantava-se rapidamente da cama e a viagem de 20 minutos até ao hospital parecia uma eternidade. E no corredor, mais cinco minutos menos cinco minutos da mesma hora, lá vinha o bom dia e o belo sorriso do costume. A boca sorria. Os dentes ficavam mais brancos naquele momento, as pálpebras abraçavam os olhos dela de uma forma diferente quando sorria. E o cabelo sempre impecavelmente despenteado de uma forma perfeita, apenas preso atrás com um gancho. Lázaro imaginava a Dra Lurdes a prender à pressa o cabelo, despreocupadamente, antes de sair de casa para conduzir o seu belo, prático - e caro - automóvel. Ele revivia mentalmente, vezes sem conta, a conversa que tinham tido, sem se lembrar da maior parte dela, pois não tinha conseguido deixar de olhar para os seus olhos claros e o seu sorriso irresistível.
*
As visitas às enfermarias continuaram, e Lázaro conciliava os seus afazeres e os seus turnos com essas visitas. Constatou que a simplicidade do tom de voz da Lurdes não mudava, e que era uma coisa inata. Os doentes perguntavam-lhe por ela muitas vezes. Sorriam com gosto quando se falava nela, com expressão de agradecimento sereno e sincero.

Uma vez, Lázaro chegou a casa e decidiu põr-se ao trabalho. Comprou uma bata na melhor loja da cidade, lavou-a com um detergente perfumado, amaciou-a de forma a que o toque ficasse perfeito, e depois bordou, com linha, no topo do bolso, o nome dela, ladeado por duas florzinhas, que embora muito simples, deram um enorme trabalho. Ele pensava que as coisas mais simples davam mais trabalho a fazer, e que eram elas que transportavam a verdadeira essência das mensagens que se queriam transmitir. Dos afectos... dos carinhos. Pensava também que a maior parte das pessoas não pensava assim, e que nem se lembrava de pintar as paredes dos hospitais com cores vivas, que nem lhes passava pela cabeça instalar candeeiros com quebra-luz que pudessem dar um ambiente mais descontraído aos corredores dos hospitais... e as flores? Coisas tão simples como vasos com flores...

Mas estava na mão dele premiar uma pessoa que ele achava que, de tão diferente, não pertencia ao hospital. Na tasca, onde ia beber uns canecos com os amigos, eles já se referiam a ela como a Branca de Neve, em tom de chacota. Lázaro não se deixava desmoralizar, e tentava explicar-lhes vezes sem conta como ela era ímpar e rara. Sempre com a mesma inflamação, sempre com o dobro da convicção que tinha antes. "Tu estás é caidinho e nem consegues ver que ela é toda riquinha e não é para ti, pá! Quando ela quiser ir para Cancun, vais ser tu a levá-la, Lázaro?" - gargalhada geral. "Vocês estão é bêbados!" - Êêêêêêêê! em jeito de atiçamento - "Ela já te deu boleia no carro dela? Se calhar está na altura de a convidares para ir de 23, não?" - Nova gargalhada geral.
Lázaro, calado, bebe mais um gole da sua caneca.
*
Vários dias depois, deixou-lhe a bata próximo do cacifo onde ela costumava guardar as suas coisas, e ficou à espreita, do outro lado da janela. Queria ver se sorria, se gostava. E de facto abriu um sorriso radiante quando, depois de desdobrar a bata, viu o bordado, pequenino, do tamanho de uma unha de polegar. Ficou a examiná-lo por momentos, como que a pensar que aquilo tinha sido feito com auxílio de uma agulha minúscula e uma lupa, de tal maneira que os pontos eram imperceptíveis. Escondido, Lázaro também sorria. Sabia que sempre tinha tido jeito para artes, e se isso fizesse alguém feliz, tanto melhor. Entretanto, Lurdes afagava o nariz no tecido da bata, apreciando a maciez e o perfume daquele branco que era mais branco do que todas as batas que já tinha visto. Acabou por se decidir a vesti-la.

Lázaro saiu do seu esconderijo e foi aos seus afazeres, sem ser notado. Assobiou mais do que o normal durante toda a manhã, enquanto carregava pacotes de compressas e ligaduras para os vários serviços, facto que não deixou de ser notado por doentes e staff hospitalar.
Mais tarde, ao passar por um corredor, reparou que a Lurdes falava baixinho com várias outras médicas, e todas se riam aos sussurros, sentindo com os dedos o toque da bata. Apressou o passo, muito envergonhado com a situação, e nem olhou para elas, acabando por bater com o carrinho carregado de compressas numa maca que estava estacionada junto a uma das paredes amareladas. Lázaro começou rapidamente a repôr o estrago, e a única pessoa que o ajudou foi a Dra Lurdes.
Enquanto apanhavam as compressas, a Lurdes falou com ele."Lázaro, gostei muito da bata e do bordado... mas queria-te pedir que não me desses mais presentes, está bem?".
Lázaro apenas conseguiu balbuciar um desculpe, um está bem, um peço desculpa Dra, de olhos presos nas instruções de utilização das embalagens de compressas. Estas palavras arranhavam-lhe a garganta, parecia que não tinha voz, como quando se quer gritar nos pesadelos. Por fim, aclarou a voz e disse, mais decididamente: "Esteja descansada Dra Lurdes. Eu compreendo bem, mas ainda bem que gostou". Afastou-se, rapidamente, como quem ainda tem muito para fazer, embora tivesse terminado as tarefas há muito.

*
Desde esse dia, os bons dias e boas tardes diminuiram até cessar, e quando calhava cruzarem os olhares, desviavam-nos rapidamente, ambos embaraçados. Lázaro não era feio, mas não tinha traços tão belos como homem como Lurdes tinha como mulher. Tinham a mesma idade e eram ambos boas pessoas, mas as semelhanças entre ambos ficavam-se por aí.
Passados vários meses, e pelo menos até ao último dia do contrato do Lázaro, a Dra Lurdes não vestiu outra bata.