Está muito sol hoje, e este cheiro a pólen de malmequer embrulhado em mil zumbidos de abelhas está a fazer-me lembrar de ti.Transpiro por todos os poros, para depois uma brisa me refrescar o molhado da t-shirt branquinha e me arrancar um par de espirros. Sim, porque em mim eles vêm sempre aos dois de cada vez, como tu sabes...
Vejo lá fora, pela janela, os miúdos da escola comendo bolicaos na sua hora de almoço, a rirem ainda mais alto do que o barulho dos carros que passam, apressados. Correm uns atrás dos outros, com as mochilas maiores que eles, com a energia que nunca mais terão, embora não o saibam. O céu está estupidamente azul e ainda estamos em Abril!
Entro em casa a tempo do jornal da tarde. A uns milhares de km, há 20 anos, rebentou um qualquer reactor 4 de uma central nuclear, e as notícias não falam de outra coisa. E a greve da PJ, e o Cavaco. Não quero. Volto a sair de casa e não digo para onde vou, porque também não sei. Dirijo-me a pé para o que resta do meu antigo campo de flores, 0,5 % do que já existiu. Há malmequeres, margaridas, madressilvas... e de novo o cheiro embebedante da primavera. Acho que é possível ficar-se louco só com este aroma, ao pensar nas recordações que traz, e no que significa na língua da natureza.
Tenho saudades tuas... e tenho saudades de sentir saudades de ti. Do teu sorriso rasgado, enorme, que só me mostraste algumas vezes. Da tua gargalhadinha que só pude ainda imaginar, mas que de certeza que é encantadora.
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Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes os Zéfiros brincar por entre flores? Vês como ali beijando-se os Amores, incitam nossos ósculos ardentes! Ei-las de planta em planta as inocentes, as vagas borboletas de mil cores! Naquele arbusto o rouxinol suspira; ora nas folhas a abelhinha pára, ora nos ares sussurrando gira: que alegre campo! Que manhã tão clara!
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Tinha tantos planos para ti, para nós! Saíamos daqui, iamos fazer o expresso do oriente... passávamos por Veneza, Grécia... Egipto... Singapura... Índia, Japão... e depois faziamos tudo outra vez! Tantos sítios que eu nunca vi! Tantas pessoas que nunca conheci... sei que já os viste e já os conheceste a quase todos, tantas vezes como às estrelas do céu ou aos grãos de areia do Kalahari mas... para mim serias sempre original, origem e fim. Tantos lugares... mas nem isso seria importante, porque sei que és capaz de fazer desaparecer o mundo se preciso for. E se não for preciso também. Mas agora é! Se ao menos voltasses para mim, ou me viesses visitar mais uma vez! Prometo que desta vez te tratarei como dádiva, e não como direito. Perdoa-me por te confundir tantas vezes com outras, mas é só a minha tentativa de te procurar nelas! É sonhar assim tão alto? É querer demais? Dizem-me que nos dias que correm não devo esperar, mas... o ar não me sabe ao mesmo sem ti. Quero aquela sensação de poder morrer afogado naquele momento e nem notar. Porque "é mesmo isto! Agora é que é!". Faz-me sentir o reactor 4 outra vez...
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O ledo passarinho, que gorjeia, d’alma exprimindo a cândida ternura; o rio transparente, que murmura, e por entre pedrinhas serpenteia; o Sol, que o céu diáfano passeia, a Lua, que lhe deve a formosura, o sorriso da Aurora, alegre e pura, a rosa, que entre os Zéfiros ondeia; a serena, amorosa Primavera, o doce autor das glórias que consigo, a Deusa das paixões e de Citera; quanto digo, meu bem, quanto não digo; tudo em tua presença degenera, nada se pode comparar contigo.
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Julguei ver-te a dobrar uma esquina, num fim de túnel, ao fundo da rua, num beco que parecia sem saída... tantas vezes! E de todas as vezes desapareceste, como num truque de câmara de cinema. Num frame estavas lá, no outro já não. E tão real, ia jurar que... tu bem sabes como as minhas rugas, na pele e no cérebro, desapareciam nas tuas visitas. Conheces-me bem... eras visita frequente na minha Casa. Porque não vens ter comigo como dantes? Não era preciso eu fazer nada... era inevitável, era a ordem natural das coisas, como a queda dos objectos de cima para baixo. Era sem querer. Era sem pedir. Era sem qualquer tipo de medo. Instalavas-te e ficavas, para durares ou para ires embora logo a seguir, mas sempre com a promessa de voltar. Como queria ter-te aproveitado melhor, sabendo de antemão que não durarias para sempre!
Sinto falta de me prenderes a respiração por entre os teus dedos. De ficar rouco de tanto rir contigo, com dores na face de não parar de sorrir. De ficar com suores frios e mãos nervosas. De não saber o que te dizer! Quero as massagens perfumadas que me fazias na nuca, quero o conforto que me davas aos pés, quero a forma como me fazias esquecer as dores! Ainda o sabes fazer, não é verdade?
É fim do dia e torno a entrar em casa, para as notícias. Já não cheira a malmequeres, voltou o vento e as abelhas foram para as colmeias. Está frio, entro nas escadas.
Zangaste-te comigo? Não vais fugir para sempre de mim, pois não? Não precisas de vir agora! Promete-me apenas... promete-me que voltas um dia, porque a primavera não é a mesma sem ti...