6 de março de 2006

Hey you!



É com dificuldade que tento emergir da lassidão que me persegue. O meu cérebro arrasta-se à luz das sombras e passa por tudo menos pelas letras que se diluem no exsudado conjuntival destes olhos sonolentos. E penso! Quantos os olhos que algures se lavam, esgotados, entreabertos, vislumbrando apenas o foco de luz que os fere à sua passagem... limbo pestanejado que inglório procura depor o dia?
Ouço “Vissi d’arte” da Tosca de Puccini (“vissi d’arte, vissi d’amore, non feci mai male ad anima viva!”). Talvez porque a noite o permite e a restrição moral do estado semi-consciente já adormece em mim, encontro nesta solidão a voz que, escrava da arte e do amor, comigo implora por piedade divina (“Nell’ora del dolre perche, perche, Signore, perche me ne rimuneri cosi?”). As horas passam a cada olhar desmesurado e arrítmico. O peso do estudo, a aridez das páginas onde ainda sinto o cheiro queimado e quente da máquina que as pariu, secam qualquer sentimento em mim. Passo de ser humano a máquina e roboticamente vivo alucinada... iludida! Bem sei que os conhecimentos são imperativos para as leges artis, contudo há toda uma vida interior que nunca o chega a ser se não abrirmos a janela e deixarmos entrar o ar.
Por vezes parece que estou enclausurada num cubo preto, opaco, onde os conhecimentos que outrora floresciam na minha mente são sugados pelo fundo negro e “tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível”. Interrogo-me acerca da validade do esforço, se servirá de alguma coisa os anos esgotados entre as aspas de outros que já foram (e são) nossas.
Decerto que valerá mas impõe-se cautela. O tempo aguarda algures mas não espera e a agudez subtil da arte em que sem cair tropeçamos exaspera. Por fim, pode ser tarde para recuperar a alma que se constrói com experiências literárias, musicais (perdão pela falta de imparcialidade), plásticas. Há dias que não vejo a luz do dia e digo isto há anos...
Não quero com este texto talvez sem nexo e insalubre quebrar a motivação e laços empreendedores com a medicina que incondicionalmente amo... Apenas me apeteceu escrever um pouco para relembrar o espírito que por muito que se esforce, o que resta são imagens, pedaços de vida que em nós ficou de forma tão subtil e inusitada que se algum dia pudesse descobrir a fórmula tudo se revelaria mais simples e duradouro.
A música que ouvia deu lugar a outra e tantas outras sucedem e eu ainda aqui tentando encontrar um propósito para estes acetatos que agora engulo para mais tarde crucificar num quadrado de qualquer exame, talvez quem sabe vomitar frente a quem feliz o apanhe. Depois? Depois esquecerei tudo porque nada disto foi descoberto por mim. Tudo foi imposto face à aliciante nota tão importante para a aceitação das nossas escolhas e tão pequena face àquilo que deveria ser o propósito das nossas acções.
E pensar que o futuro da medicina, a nata, coalha nos bordos dos rectângulos das verdades absolutas e inequívocas mas deléveis, como um baralho que se desfaz à mais subtil brisa. O pior é que todos nós fazemos parte desse baralho, tacteando às escuras os desígnios daqueles que nos calçam com botas rotas (“Hey you, out there in the cold getting lonely, getting old can you feel me? (...) Hey you, don’t help them ti bury the light, don’t give in without a fight.”).

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