10 de dezembro de 2005

Carta a uma jovem burguesa - parte I

Caros leitores:
após um mês de aparente afastamento dos meandros da escrita, afastamento esse que não foi de forma alguma premeditado ou propositado mas apenas obra do acaso e das contrariedades quotidianas, eis que vos apresento um texto que, na minha opinião, é simultaneamente uma pérola e uma lição de vida.Trata-se de uma carta escrita por alguém célebre da nossa praça pública, que me deu tanto prazer a ler que resolvi subscrevê-la aqui, para que possam dela desfrutar e, se assim entenderem, tecer comentários ou opiniões.
Devido à extensão da carta, e porque eu sei que nem todos os caros leitores resistem ao afã de ler muitos caracteres de seguida, decidi dividi-la em partes. No fim divulgarei o autor, e nessa altura poderão comparar as informações e opiniões que sustentam sobre ele, com as ideias veiculadas pela carta.

Já estava há muito tempo à espera de um momento particularmente oportuno para lançar no blog esta carta. Pois bem, creio que chegou a altura certa: tive uma conversa com uma pessoa em que debatíamos a real importância das classes socio-económicas no comportamento, desejos imediatos e ambições das pessoas, e a relevância destes três parâmetros sociológicos na escolha racional de um parceiro; no sentimento puro e instintivo desenvolvido por essa pessoa; e no êxito ou fracasso (comparando com a nossa experiência pessoal directa e indirecta) a que essa relação estará ou não à partida votada quando estabelecida entre pessoas de classes consideravelmente diferentes. Esta conversa foi breve mas muito interessante. Eu e essa pessoa discordámos parcialmente, e vim para casa com esta carta na cabeça. Se não encontrarem pontos de contacto entre o assunto da conversa e a carta (como eu encontrei, e gritantes), também não os vou explicar :)

Não obstante, a carta não se esgota nisto, pelo contrário. Espero que considerem o desafio tão produtivo como eu achei.
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Carta a uma jovem burguesa

Peço-lhe duas coisas. A primeira: que procure ler as minhas palavras com a ideia de que há da minha parte uma total isenção, isto é, que eu apenas procuro ajudá-la e de forma alguma impor-lhe um parecer ou forçar uma atitude. A segunda: procure ler as minhas palavras com o máximo de isenção da sua parte, isto é, sem que o seu orgulho e vaidade naturais e aquilo que você julga serem segredos da sua vida íntima possam desvirtuar o sentido das minhas ideias ou fazê-la reagir numa, aliás instintiva, irredutibilidade. Esforce-se por ver no que digo um caso geral que, por certas razões, pode ser o seu e evite pensar que eu aponto e generalizo o seu caso particular. Se assim fizer, conseguirá meditar com mais calma, o que neste caso significa: com uma melhor compreensão das realidades.

Outra observação prévia: recordo-lhe as conversas que tivemos e a possibilidade que então houve de nos observarmos à vontade. Lembre-se de que sou tão conhecido por si como você o é por mim. Faço esta observação para evitar que você julgue estar numa situação em que algumas pessoas têm por vezes julgado estar em relação a mim, isto é, conhecerem os tópicos fundamentais da minha vida, os meus objectivos, as minhas preferências e julgarem ao mesmo tempo ser pessoas «desconhecidas» ou «incompreendidas». Creio que você será suficientemente previdente para saber que eu também conheço os tópicos fundamentais da sua vida, os seus objectivos, as suas preferências e ainda um outro e mais doloroso aspecto: as suas impossibilidades.

Você pede-me indicações acerca do seu comportamento futuro. Repare, boa amiga, que as circunstâncias em que o faz mostram que você espera determinadas indicações e só por essa razão, só por julgar que eu posso, de certa forma, ir ao encontro dos seus desejos contrariados e das suas recalcadas ambições, só por isso você me procura neste momento. Você quer (melhor: necessita) que alguém lhe diga: «tem razão a tua revolta e a tua insatisfação; deves dar largas a todos os teus desejos, deves quebrar de vez todas essas cadeias que te prendem os movimentos.». Era isso que você esperava ao escrever-me. Eu também falaria assim, boa amiga, se as minhas palavras resolvessem a situação, se elas não só lhe dessem um ânimo e uma vontade mas também modificassem o meio em que você vive, as suas aptidões para lutar pela vida, as circunstâncias desfavoráveis em que você tem de agir. Mas, como assim não sucede, se eu assim falasse, estaria a dar-lhe uma perspectiva errada, estaria a conduzi-la a uma atitude precipitada e louca onde você soçobraria, pode crer-me.

São três os problemas fundamentais da sua vida: o problema da conduta geral ante a vida; o problema da família; e o problema do amor. O primeiro é o que parece dominar e determina essa tão característica insatisfação, essa desgostosa incerteza da conquista da própria felicidade, essas enérgicas reacções capazes de vencer montanhas e esses recuos de abatimento e de desânimo. Mas os outros dois problemas apresentam-se com mais vigor no dia-a-dia da vida e são eles que obcecam, que indispõem, que exaltam, que fazem perder a disposição para meditar e combater.

Você gostaria de ter uma vida mais harmónica com as suas concepções. Gostaria que tal vida absorvesse e arrastasse. Gostaria de se entregar a ela com paixão definitiva, de viver por ela e para ela. Faço-lhe essa justiça, porque sei que isso lhe dá confiança em si e fortalece a sua boa vontade. Mas repare. As raparigas criadas e desenvolvidas no seu meio, raparigas fartas e ociosas, receberam desde pequenas a influência desse meio e não são poucas as dedadas que nelas marcaram a fartura e a ociosidade. Eu posso supor que você não tema a adversidade, não tema as dificuldades mais brutais. Posso mesmo supor que o seu desejo seja caminhar para elas, no propósito de as defrontar e vencer. Mas esse é um impensado desejo que não tem em conta as suas próprias debilidades, os seus próprios defeitos, as raízes que afinal a prendem - contra a sua vontade - à sociedade em que você se fez mulher. Não é no movimento brusco e violento que uma rapariga burguesa - burguesa na educação, no standard económico, em anos de vida - se desprende da sua classe e aceita no fundo do seu ser as contingências de uma nova vida, que implica sacrifícios diários dos mais variados. Não é num movimento brusco que a sensibilidade (da pele e dos sentimentos) se modifica, se tempera, se enrija. Esse género de felicidade que você deseja, a felicidade pela coerência e pelo acordo dos actos com as concepções, não se conquista por mero acto de vontade. É numa batalha de anos, num crescendum de forças íntimas, numa amoldação progressiva às dificuldades e à luta, que se cria a única condição que pode tornar possível a conquista de uma tal felicidade: o acordo real entre as concepções, os apetites, a sensibilidade, os desejos mais profundos e instintivos. Eu não quero desanimá-la, boa amiga. Quero apenas fazer-lhe ver - para que você consiga forjar o seu futuro - que está ainda nas primeiras e mais instintivas reacções e que tem na sua frente um longo embora prometedor caminho. Creia que seria para si própria um motivo de desilusões uma mudança radical imediata da sua vida. Você não está preparada para isso, não pode estar preparada para isso. Em breve seria vencida e estaria votada a um regresso doloroso a uma vida que odeia. Você deve ter em conta a sua situação, as suas verdadeiras qualidades e as suas verdadeiras dificuldades, para, dentro da realidade da sua vida, procurar agir de forma consequente. Pode crer, boa amiga, que lhe é possível fazer muito, sem que tenha de imediatamente dar um audaciosíssimo passo em frente.

Pena é que não tenha começado ontem o que só agora vai talvez começar. Mas houve razões e a compreensão de que elas foram independentes da sua vontade deve animá-la ao esforço que agora tem de fazer. Sinceramente lhe digo que poderá um dia alcançar a felicidade que deseja, o acordo absoluto entre os actos e as concepções. Mas, para isso, tem de batalhar muito, com serenidade que não exclui ardor e paixão, com inteligência que não exclui os movimentos instintivos, com confiança que não exclui impaciência e insatisfação.
Agora o problema familiar.

(continua)

1 comentário:

  1. Apenas mais um pequeno pedido, em jeito de recomendação: se alguém souber quem é o autor, não o revele antes do fim da carta ser publicado, porque isso talvez fosse desvirtuar as opiniões e comentários dos outros leitores.

    Agradeço a vossa compreensão!

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