Passo calmamente entre as brumas do tempo, enevoadas as trevas que plantam o terreno. Olho sobre o meu ombro e vejo a rua apinhada de personagens deambulantes, embriagadas, num ambiente frio e sombrio. Ao fundo vejo a luz de um candeeiro, que parece fugaz devido ao vidro baço que encerra a fonte de tal triste luminosidade. Todos em volta riem, bebem, choram, vomitam, desequilibram. A cada porta que passo, vejo um magote de pessoas abraçadas, algumas a agarrarem na testa de outros nauseados. É a alegria. A felicidade da decadência. O auge da actividade cerebral zero. O extremo da ausência de sinapses corticais. O famoso “piloto automático”. Olho sobre o meu outro ombro e a cena repete-se. “Porquê?”, pergunto-me. Olho-me ao vidro de uma porta, com uma portada de madeira branca visível na sua transparência, e vejo a resposta. O aspecto depressivo e fundo que o fácies expressa um dia surge por bem, porque desperta para o estado catatónico e cataléptico que o álcool nos induz. E sim, sabe bem. Sabe bem olhar para a bebida, ver a bebida, ingerir a bebida, sentir a bebida e observar a bebida a tomar conta de nós. É bom não é? Tira a dor. Tira a angústia. Faz-nos alegres, por muito pequeno que esse instante possa ser. Faz-nos sentir suicidas. Faz-nos sentir na corda bamba: entre a loucura e o tédio, a mania e a depressão, a raiva e a paz de espírito. Sentimo-nos poderosos e vulneráveis tal como as ondas do mar vão e vêm. Sinto-me com o poder lunar de inverter marés e com o poder universal de colapsar num buraco negro. Sim, aquele em que absorvemos tudo e, no entanto, isso não nos diz nada (ou não nos faz dizer nada).
Vejo-me ao vidro e acordo deste pensamento profundo abanado no ombro por um amigo: “Então jovem, já estás todo queimado?”. Nem comecei a beber e já vejo o que esta maldita me vai fazer. Não sei se hei de viver duas vidas paralelas. Uma, depressiva, em que esta rua é o meu caminho: escuro, soturno, macabro, sensação que me esventra e me possui as entranhas; outra, alegre, seguindo o mesmo caminho, só que atravessando uma das portas laterais…e depois outra…e outra…e outra. “O que é que tens?”, perguntam-me. Sinto-me o Ricardo Reis sem sentido do efémero. Sinto-me o Fernando Pessoa que usa o absinto como seu companheiro de mesa; o lápis e o papel fazem o outro lado. Ao menos ele conseguia expressar-se. Libertava-se através dos seus heterónimos. Para quê embriagar-me quando a visão se mantém a mesma? Agora vejo-me num estado estático. É o centro. O repouso. Não há mania. Não há depressão. E o que vejo eu? Cristais? O fundo do copo? A minha face caleidoscopicamente desenhada no vidro expressa aquilo que sou. Sinto-me agora multifacetado e dói-me o atravessar do vidro prismático como se estivesse a ser rasgado. Maldito fotão, maldito sejas. Às vezes queria que um pouco de mim morresse para que não imaginasse as atrocidades que se cometem em nome de quaisquer que sejam os princípios, os valores, a moral ou a ética. Mas como apago isso? “Estás a sentir-te bem?”. Estou. Mas não me ouvem. Apagar o quê? Só posso conhecer melhor o mundo se o sentir de todas as maneiras. “Quem é aquele no fundo da mesa? Ah, somos nós! Venham, juntem-se a mim e vamos abraçados lá para fora!”.
Olhem…aquela é a rua fria e sombria para a qual outrora olhara por cima do meu ombro. Está cheia de pessoas que deambulam e se embriagam, num ambiente quente e acolhedor. Lá ao fundo continua a luz do candeeiro que encerra, com um vidro pouco baço, uma alegre e refringente luminosidade. Todos em volta riem, bebem, choram, vomitam e desequilibram. É a alegria. A ignorância da decadência. Por fim, olho ao mesmo vidro e...não vejo a resposta.
Vejo-me ao vidro e acordo deste pensamento profundo abanado no ombro por um amigo: “Então jovem, já estás todo queimado?”. Nem comecei a beber e já vejo o que esta maldita me vai fazer. Não sei se hei de viver duas vidas paralelas. Uma, depressiva, em que esta rua é o meu caminho: escuro, soturno, macabro, sensação que me esventra e me possui as entranhas; outra, alegre, seguindo o mesmo caminho, só que atravessando uma das portas laterais…e depois outra…e outra…e outra. “O que é que tens?”, perguntam-me. Sinto-me o Ricardo Reis sem sentido do efémero. Sinto-me o Fernando Pessoa que usa o absinto como seu companheiro de mesa; o lápis e o papel fazem o outro lado. Ao menos ele conseguia expressar-se. Libertava-se através dos seus heterónimos. Para quê embriagar-me quando a visão se mantém a mesma? Agora vejo-me num estado estático. É o centro. O repouso. Não há mania. Não há depressão. E o que vejo eu? Cristais? O fundo do copo? A minha face caleidoscopicamente desenhada no vidro expressa aquilo que sou. Sinto-me agora multifacetado e dói-me o atravessar do vidro prismático como se estivesse a ser rasgado. Maldito fotão, maldito sejas. Às vezes queria que um pouco de mim morresse para que não imaginasse as atrocidades que se cometem em nome de quaisquer que sejam os princípios, os valores, a moral ou a ética. Mas como apago isso? “Estás a sentir-te bem?”. Estou. Mas não me ouvem. Apagar o quê? Só posso conhecer melhor o mundo se o sentir de todas as maneiras. “Quem é aquele no fundo da mesa? Ah, somos nós! Venham, juntem-se a mim e vamos abraçados lá para fora!”.
Olhem…aquela é a rua fria e sombria para a qual outrora olhara por cima do meu ombro. Está cheia de pessoas que deambulam e se embriagam, num ambiente quente e acolhedor. Lá ao fundo continua a luz do candeeiro que encerra, com um vidro pouco baço, uma alegre e refringente luminosidade. Todos em volta riem, bebem, choram, vomitam e desequilibram. É a alegria. A ignorância da decadência. Por fim, olho ao mesmo vidro e...não vejo a resposta.
"O aspecto depressivo e fundo que o fácies expressa um dia surge por bem, porque desperta para o estado catatónico e cataléptico que o álcool nos induz. E sim, sabe bem. Sabe bem olhar para a bebida, ver a bebida, ingerir a bebida, sentir a bebida e observar a bebida a tomar conta de nós. É bom não é? Tira a dor. Tira a angústia. Faz-nos alegres, por muito pequeno que esse instante possa ser. Faz-nos sentir suicidas. Faz-nos sentir na corda bamba: entre a loucura e o tédio, a mania e a depressão, a raiva e a paz de espírito."
ResponderEliminarAchei esta porção muito boa mesmo. Continua.
Todos nós tivémos momentos em que, estando ao pé de pessoas que nos dizem algo (amigos, namoradas/os...), nos pomos a pensar «mas quem é esta gente e o que raio estou eu a fazer aqui?» ou «o que é que me une a este pessoal?». Situações em que nada faz sentido no cérebro.
ResponderEliminarAté ao momento em que nos apercebemos que vida, só temos esta e não podemos dar-nos ao luxo de a desaproveitar.
Mais um excelente texto introspectivo. Parabéns
Um abraço,
Rui
O texto não defrauda as espectativas... mas não desfazendo, a foto está simplesmente exelente... acho que já curti umas ao pé daquele lancil!
ResponderEliminarAbraço