15 de novembro de 2005

Entropia

Era uma vez…nada. Esqueçam. Não queria começar por “era uma vez”. Mas comecei. Contrariedades. Fossem todas elas como o levantar da cama, sempre quente, sempre com a companhia/companheira da vida e partir para o frio ambiente que rodeia este espaço de amor. Enfim, o calor que não se quer perder por nada deste mundo mas que temos de abandonar por instantes.
Porquê? Estamos tão bem, falsamente isolados das agressões exteriores, enfrentando o calor dos nossos corpos, um contra o outro, até a nossa entalpia quebrar à mesma velocidade que nos confrontamos com a entropia corporal que nos invade.

- Não, não vás! Fica! – diz ela com metade da almofada discretamente saliente nas suas mejillas.
- Tenho que ir…
- Pelo menos deixa que o teu calor se apodere do fino crepitar dos lençóis sobre a minha pele…
- Hoje chegarei cedo a casa.
- Hoje sais cedo dela…
- Deixo-te o meu calor para que dormites um pouco mais sobre o meu odor, sobre as sensações vividas e vivas que temos vivido e que viveremos!
- Vai e vem depressa. Sem demoras. Sem pressas. Calmo. Mas depois, vem e sê a luz que me aquece por dentro e por fora, como uma acha incandescente que a cada beijo, como se de um sopro se tratasse, emerge das cinzas!

Cedo vou e cedo venho. Tenho-te sempre nos meus braços e contigo enfrento todas as vicissitudes do dia a dia. Não digas que esperas por mim, sabendo que sempre me guardaste no teu canto cortical mais privilegiado que arranjaste! Não digas que esperas por mim, sabendo que podes encontrar o meu calor num pedaço de tecido que tenha estado perto de ti. Não digas que sentes saudades minhas quando sabes que as memórias nos despertam para a vida e não para a falta dela! Não digo que espero por ti porque sei que somos a entalpia e a entropia, o dia e a noite. Enganei-me. Somos a entropia e o dia, a entalpia e a noite: não depende do ciclo terrestre, nem do ciclo circadiano. Depende de nós. Afinal, esperamos por ambos porque sabemos que são precisos dois corpos para se estabelecer um equilíbrio. Mais uma vez enganei-me. Sabemos que são precisas duas pessoas para se estabelecer um equilíbrio.
Quentes, elevamo-nos até ao espaço celestial mais recôndito, passando por inúmeras nuvens feitas de um algodão finíssimo e consistente. Olho lá para fora e vejo dois corpos celestes e (bendita a ilusão de óptica que alegremente me desperta) uma nuvem em forma de C, invadida pelo reflexo lunar, deitada, abraça-os intensamente brilhantes, como se de uma face sorridente se tratasse. Mergulhamos num movimento rápido de olhos. Várias vezes. Acordo e olho para o lado. Entre os teus pontapés espontâneos, qual reflexo rotuliano, apercebo-me do brilho ténue que a tua face espelha lateralmente à luz matutina. O teu pescoço pulsa lateral e centralmente de forma díspar. O teu cabelo repousa levemente sobre a tua orelha, coberta e discreta. Perfeita. Não, não me refiro exclusivamente à orelha. Passo a face posterior do meu indicador de forma tangencial à tua cara e acordas levemente. Olhas para mim e pensas de forma telepática comigo. O frio lá fora é avassalador.

- Não, não vás. Fica…
- Não, não vou.
- Não? – diz ela desenhando um esboço sorridente pois as sinapses ainda demoravam.
- Não. Hoje o calor apodera-se do fino crepitar dos lençóis. Hoje, sem demoras, sem pressas e calmos, seremos a nossa chama. Sei que aqui estará sempre quente e eu não suporto o frio.


Para ti.

9 de novembro de 2005

Primeira pessoa do singular ou do plural?

“Será que dá para um sofá? Dá, dáá, dáá… e aquela viagem ao Brasil? Dá, dáá, dáá…”. O dedo corre automaticamente para o botão para mudar o posto.
- Onde queres que te deixe?
- Deixa-me ali na estação, mais ali à frente…
- Então não vens comigo?
- Dá-me mais jeito ficar aqui, até logo.
O pensamento solta-se tão depressa como o corpo do carro e a porta fecha-se. Quase até que passa das sinapses ás cordas vocais. Ar fresco! O caminho hoje é feito a pé, caminhar é sempre bom, dar uma volta na própria companhia. Esta decisão está a ser difícil, as coisas não são rosas e ainda por cima já estou farto de estar sempre a lavar louça! Perco tempo a fazer comida, arroz, bifes, esparguete, alho daqui, cebola dali, margarina, já sabes – mal passado! Nunca está nada bem. Este vento sabe bem… nunca, nada, que palavras fortes. É difícil, custa, gostava de ter isto e aquilo, aqueles têm aquilo… ás tantas os carros apitam. O pensamento fez o corpo desaguar no meio do trânsito.
- Epá, ‘tás drogado ó quê? Estes gajos que se metem na passa… – primeira a fundo e lá vão eles à procura de outro problema.

“De 400 a 5000 euros peça o que quiser…”
– Estes gajos dão dinheiro em barda – desviando o olhar da televisão – ‘Tão pá acorda! Que é que me querias contar?
– Ah, nada demais, só para saber como andas…
– Eu sempre na mesma – uma testa que se franze e um sobrolho que se dobra – e tu puto?
– Estou bem, um pouco dessintonizado.
Uma gargalhada sincera. O galão leva uma sopradela que lhe desvia a espuma e o vapor que dele sai ganha o sentido do sopro, voltando de seguida ao seu calmo rumo. Os olhos fixam o menisco e o copo fica com um golo a menos.
– Isso é o que se diz quando não se quer contar o problema. Tu lá sabes.
– Já viste aquela ali? Era cá uma baleia na secundária… olha lá agora! – Pá, ó vidraças, e se fosses ver se eu estou ali na esquina? Estamos aqui os dois para tentar sintonizar o tipo e tu só com merdas!
– Mas há algum problema?

“É só ligar e em 24h tem o dinheiro na sua conta…” – a voz fica robótica e dilui-se em ruído. O dedo vai atingindo aleatoriamente os botões do rádio sem resultado.
– Até o rádio não funciona? Mas será que alguma coisa funciona na minha vida? – o rádio recebe um murro abafado. Os olhos brilham mais, dir-se-ia que molhados. O pensamento é confuso. Não é arrependimento mas antes um tapete que sai debaixo dos pés, o que já não aparece feito… É sempre melhor pensar que há anões mágicos que fazem com que tudo apareça feito, ao bom estilo da fada dos dentes. Eu faço um esforço, ele também, mas parece que não chega… O que será que falta? Será que falta? Não temos vida para isto, parece que era tudo mais fácil antes!
As buzinas e os sinais de luzes fazem lembrar que o sinal deixou de estar vermelho.
– Ele tem de me ajudar…

“Quem tem pode, você também pode ter tudo o que quer, basta ligar…”
– Então mas conta lá como é a vida de casado…
– É baril, não é muito diferente. Até é melhor, é um jogo mais difícil.
Jogo mais difícil, mas o casamento é um jogo mais difícil? A pausa faz crescer a curiosidade.
– A nossa casa tem aspiração central, é porreiro, é mais fácil de limpar, a minha avó diz que é muito melhor! – A curiosidade não foi saciada.
– Mas a tua avó é que aspira? Por isso é que é um jogo difícil? – um pouco de ingenuidade escandalosamente forçada parece resultar com pessoas que se têm em boa conta.
– Achas que aspirar é um jogo? Lembras-te da minha despedida de solteiro? – um aceno de cabeça com os olhos fixos sem pestanejar cataliza o diálogo.
– Pois é. Então posso dizer que desde então faço Lisboa Badajoz em menos de três horas!
Bateu e fez ricochete com alguma violência.
– Mas a tua despedida foi naquele strip club ranhoso!? Que é que tem isso a ver com Badajoz? – talvez caramelos!
– Isso amigo foi a oficial, a “off the record” – os dedinhos fazendo as aspas e o sorriso de canto de boca empregues como elementos cénicos dando corpo à cena – passou pelo outro lado da fronteira! Quarenta euricos e pau… do bom e do melhor, e ainda me passa uma jola pelo estreito! Um gajo que se sabe cuidar! – e acompanhou a frase mantendo o sorriso e descendo as mãos paralelamente ao tronco, um elemento cénico normalmente interpretado como reforço de alguém que se cuida, que pensa em si!
Acho que o sorriso não conseguiu sair como era pretendido mas com a mesma ingenuidade escandalosamente forçada a corda foi esticada.
– Então e planos futuros? – a voz não conseguiu ser verdadeira.
– Amigo, agora venham os miúdos! Mas já chega de falar de mim! Fala-me de ti. Pelo teu telefonema parecias precisar duns conselhos…
Há frases que fazem um ser humano levantar-se como uma mola de esferográfica pressionada entre os dedos.
– Olha-me só as horas, tenho de ir fazer o jantar, hoje chegamos tarde a casa. Um abraço.
– OK. Já sabes que podes contar comigo – desta vez o elemento cénico foi o polegar para cima. Que raio quer isso dizer?

“Compre agora, pague depois!” – vocifera o rádio do porteiro.
– Boa tarde! – a custo pois o peso que vem nos braços tira energia à voz.
– Meus Deus vêm carregadíssimo, deixe que eu lhe dou uma ajuda.
As sardinhas de conserva em molho de tomate não se sentem tão apertadas como neste elevador. A chave roda, o pé ajuda a abrir a porta.
– Mas por onde andaste? – a voz chegou antes do corpo. Um barulho metálico ecoa no corredor qual andaimes que se despenham dum 10º andar ou então foi um tacho que escorregou duma mão. Como que atingida por um raio congelante dum silver surfer qualquer estancou.
– O que é isso?
– Não sabes? Geribérias! Também não sabia que existiam tais flores! Vais gostar sempre do mais difícil! Gostas?
A figura congelada assim continuava, raio congelante potentíssimo prova-se assim serem as Geribérias.
– Qual delas?
– Não sei! Escolhe uma entre estas 300.
– Porque fizeste isto?
– Lembrei-me que me andava a esquecer do mais importante, do quanto te amo! Isso e porque apanhei uma promoção óptima! – o elemento cénico de encolher os ombros foi utilizado, provando-se aqui que tudo tem um lado bom. O efeito do tal raio passou e um beijo quente desprendeu-se fazendo cair cerca de 300 geribérias – nenhuma florista tem tanta flor! – e uma série de outros adereços que nos enchem armários.

8 de novembro de 2005

História para adormecer

Acordaste em sobressalto. Desesperada. Atiras o lençol para o lado e sentas-te na cama, a tremer; levas as mãos à cabeça e soluças baixinho, no escuro do teu quarto, ainda a viver o pesadelo horrível ao qual puseste ponto final com o teu acordar.

Seriam lembranças do passado? Temores do presente, desconfianças no futuro?

Abres a porta e sais para fora da tua conchinha, fazendo aquele tsss tsss tão familiar de uns pezinhos pantufados no chão. Abres o frigorífico e toda uma luz gelada sacode o escuro da cozinha. Não é isso que queres. Enches um copo com água, escancaras a janela marcada por outras conversas... e respiras o ar frio da madrugada ainda menina. Sentes nos braços o parapeito húmido enquanto espreitas de olhos embaciados cá para fora, para o mundo exterior, onde o silêncio é de quando em quando quebrado pelo som cavo e ritmado de pneus a atropelarem as lombas da estrada. Trum trum... trum-trum, trum-trum trumtrumtrumtrumtrumtrum...
Observas, hipnotizada, os semáforos intermitentes como eu. Cuidado... perigo... avançar com cuidado... avançar com cuidado... perigo...
Sou mãos nos teus ombros, polegares no teu pescoço exposto e restantes dedos repousantes nas tuas clavículas. Sentes? Não consegues dormir? Acalma, foi só um pesadelo... já passou, vem dormir, não fiques ao frio.
Sou agora colo pairante no ar, no qual flutuas de volta à tua cama. Sentes a leveza? És menos densa que o ar... sou calor que sublima o frio nocturno da tua pele e te devolve o aconchego do teu quarto.
Deita-te. Sou o teu colchão. Não, espera... estou também por cima de ti, sou ao mesmo tempo o teu lençol. Sou uma brisa quente e fria que passa pelo bordo da tua orelha sem nada dizer e te arrepia os cabelos. Consegues senti-la?
Sou corpo que ondula por baixo do teu, acariciando-te as costas. Também sou pé que te seduz a barriga da perna com artes de algodão e ofícios de trincha de pintar...
Sou pontas dos dedos que te tocam o peito ao de leve e te fazem levantar a pele como água em púcaro por cima de brasas. Respira fundo e ondula comigo. Devagarinho...
Fecha os olhos doces, tão doces... doce-diabético. Sou mão que desliza pelo teu ventre que não mostra qualquer defesa. Devagarinho... enervantemente devagar. Sou lábios que te tocam a bochecha, perto do biquinho da boca. Consegues sentir a humidade quente à tua volta? Crispa os dedos dos pés no colchão.
Respira agora mais depressa. Estás inquieta, não é? Acalma... tens todo o tempo do mundo e lá fora ninguém te espera...
Sou a mesma mão que desce pelo teu ventre que não defende mas tenta atacar. Sou outra mão que te acaricia o coração... mais dentro, mais fundo. Devagarinho... consegues sentir o teu coração a bater depressa? Consegues sentir-me como sopro rápido no teu ouvido, que não diz nada do que queres ouvir? Consegues imaginar os meus dedos a massajar o teu couro cabeludo, puxando os teus cabelos húmidos com suave violência?
Sente-me como mão, a deslizar sobre o teu coração molhado, devagar, mais depressa, mais depressa ainda, como o barulho das lombas da estrada, insisto, como que a reanimar-te, ainda mais depressa... retesa os músculos todos, arqueia-te como um gato, sustem a respiração, cala-te! ... Consegues sentir como te quero bem?!...
Desfalece sobre o colchão, adormece cansada, descansada... amanhã é outro dia e o mundo esperar-te-à lá fora.

Descansa bem...

7 de novembro de 2005

Deambulando por aí...


Passo calmamente entre as brumas do tempo, enevoadas as trevas que plantam o terreno. Olho sobre o meu ombro e vejo a rua apinhada de personagens deambulantes, embriagadas, num ambiente frio e sombrio. Ao fundo vejo a luz de um candeeiro, que parece fugaz devido ao vidro baço que encerra a fonte de tal triste luminosidade. Todos em volta riem, bebem, choram, vomitam, desequilibram. A cada porta que passo, vejo um magote de pessoas abraçadas, algumas a agarrarem na testa de outros nauseados. É a alegria. A felicidade da decadência. O auge da actividade cerebral zero. O extremo da ausência de sinapses corticais. O famoso “piloto automático”. Olho sobre o meu outro ombro e a cena repete-se. “Porquê?”, pergunto-me. Olho-me ao vidro de uma porta, com uma portada de madeira branca visível na sua transparência, e vejo a resposta. O aspecto depressivo e fundo que o fácies expressa um dia surge por bem, porque desperta para o estado catatónico e cataléptico que o álcool nos induz. E sim, sabe bem. Sabe bem olhar para a bebida, ver a bebida, ingerir a bebida, sentir a bebida e observar a bebida a tomar conta de nós. É bom não é? Tira a dor. Tira a angústia. Faz-nos alegres, por muito pequeno que esse instante possa ser. Faz-nos sentir suicidas. Faz-nos sentir na corda bamba: entre a loucura e o tédio, a mania e a depressão, a raiva e a paz de espírito. Sentimo-nos poderosos e vulneráveis tal como as ondas do mar vão e vêm. Sinto-me com o poder lunar de inverter marés e com o poder universal de colapsar num buraco negro. Sim, aquele em que absorvemos tudo e, no entanto, isso não nos diz nada (ou não nos faz dizer nada).
Vejo-me ao vidro e acordo deste pensamento profundo abanado no ombro por um amigo: “Então jovem, já estás todo queimado?”. Nem comecei a beber e já vejo o que esta maldita me vai fazer. Não sei se hei de viver duas vidas paralelas. Uma, depressiva, em que esta rua é o meu caminho: escuro, soturno, macabro, sensação que me esventra e me possui as entranhas; outra, alegre, seguindo o mesmo caminho, só que atravessando uma das portas laterais…e depois outra…e outra…e outra. “O que é que tens?”, perguntam-me. Sinto-me o Ricardo Reis sem sentido do efémero. Sinto-me o Fernando Pessoa que usa o absinto como seu companheiro de mesa; o lápis e o papel fazem o outro lado. Ao menos ele conseguia expressar-se. Libertava-se através dos seus heterónimos. Para quê embriagar-me quando a visão se mantém a mesma? Agora vejo-me num estado estático. É o centro. O repouso. Não há mania. Não há depressão. E o que vejo eu? Cristais? O fundo do copo? A minha face caleidoscopicamente desenhada no vidro expressa aquilo que sou. Sinto-me agora multifacetado e dói-me o atravessar do vidro prismático como se estivesse a ser rasgado. Maldito fotão, maldito sejas. Às vezes queria que um pouco de mim morresse para que não imaginasse as atrocidades que se cometem em nome de quaisquer que sejam os princípios, os valores, a moral ou a ética. Mas como apago isso? “Estás a sentir-te bem?”. Estou. Mas não me ouvem. Apagar o quê? Só posso conhecer melhor o mundo se o sentir de todas as maneiras. “Quem é aquele no fundo da mesa? Ah, somos nós! Venham, juntem-se a mim e vamos abraçados lá para fora!”.
Olhem…aquela é a rua fria e sombria para a qual outrora olhara por cima do meu ombro. Está cheia de pessoas que deambulam e se embriagam, num ambiente quente e acolhedor. Lá ao fundo continua a luz do candeeiro que encerra, com um vidro pouco baço, uma alegre e refringente luminosidade. Todos em volta riem, bebem, choram, vomitam e desequilibram. É a alegria. A ignorância da decadência. Por fim, olho ao mesmo vidro e...não vejo a resposta.

4 de novembro de 2005

Amigos de contingência


Era uma vez uma tarde de feriado, em que se imaginaria uma certa acalmia dos serviços de urgência do hospital. No entanto, parecia que toda a gente tinha decidido magoar-se na banheira ou apanhar gripes; assim, a sala de espera estava atafulhada de gente que esperava impacientemente ser vista pelos médicos. Outros chamavam pela mãe, com braços partidos, pés torcidos, articulações deslocadas... e os balcões não tinham mãos a medir.
Mas esta azáfama não incomodava minimamente o neurocirurgião, que, sentado na salinha de convívio dos médicos, fumava o seu davidoff e repousava os seus olhos desinteressadamente na televisão, onde davam imagens da 1ª companhia. Quando já estava quase a dormir, entra uma enfermeira e chama-o para o bloco operatório. Alguém tinha dado entrada numa ambulância do ENEM, com um traumatismo craniano que lhe tinha provocado um hematoma epidural; tinha sido encontrado caído na via pública, inconsciente, sem documentos.
Espreguiça-se indolentemente, sacode a bata das cinzas e apanha o elevador para o piso -2. Veste depois os preparos da cirurgia e entra na sala de operações. Deitado na mesa, já entubado e envolto em panos, papéis, plásticos, encontra-se um enorme homem negro, com metade da cabeça rapada, algaliado, ligado aos monitores. Inconsciente, anestesiado, até parecia que estava só a dormir, não fosse o enorme inchaço no lado da cabeça que estava rapado. Não tinha marcas exteriores de contusão com objectos usuais, como garrafas, tacos de basebol ou pedras. Devia ter batido com a cabeça no chão.
Observando as imagens da tomografia, podia concluir que o indivíduo, que tinha cara de caboverdiano, tinha já um dos lobos cerebrais quase completamente comprimido pelo hematoma. Se não fosse imediatamente operado ia morrer pela certa.

- Este preto teve sorte que alguém o viu e o trouxe para cá! Metem-se nos copos e depois escorregam e batem com a cabeça!
- Provavelmente nem deu conta. Só deve ter perdido os sentidos quando o hematoma lhe começou a comprimir os miolos...
- Vamos lá então fazer-lhe saltar a tampa, senão morre.

Depois de lhe removerem o couro cabeludo, conseguiram a muito custo abrir-lhe o crânio e retirar uma porção do osso do tamanho da palma de uma mão. Mal retiraram a tampinha, sairam grandes quantidades de sangue. Era uma hemorragia massiva.

- Metam-lhe mais soro e tipem-lhe o sangue! Ele vai precisar de bastante!

Talvez o indivíduo bebesse muito, a avaliar por outros sinais que para aí apontavam. Para além disso, estava a ser muito complicado parar a hemorragia, porque ele evidenciava dificuldades na coagulação.
- Tragam também concentrado de plaquetas que isto não pára de sangrar nem por nada!

Três horas e meia depois, com o negro já a caminho dos cuidados intensivos, estava o neurocirurgião nos vestiários do bloco operatório a vestir-se. Entretanto, conversava com colegas sobre o doente operado.

- Vai ter sequelas de certeza. O preto tinha o cérebro completamente metido para dentro! Parecia que tinha tido um côco encostado ao cérebro! E o que me irrita mais é que se for preciso daqui a um mês já anda aí todo contente nos copos outra vez. Bem, pelo menos talvez não morra disto.

Estalou os dedos, espreguiçou-se outra vez, e vai para a sala de médicos ver mais um bocado da 1ª companhia.

*

Sete meses depois, regressava o médico a casa, depois de ter estado a jantar num restaurante italiano da margem sul com uma amiga enfermeira. Vinha calmamente a pensar na vida e na desculpa que ia arranjar desta vez para chegar a casa tão tarde, sem ter avisado a esposa, já meio alterado por causa do vinho que tinha bebido, e também por causa do charro que tinha fumado no carro com a amiga, pouco antes de se ter despedido calorosamente dela.
Perto da praça de espanha, ao passar por baixo do aqueduto das águas livres, manda a beata do davidoff acabado de fumar pela janela, mas com o vento ela volta a entrar e cai-lhe por entre as pernas. Desesperado pela dor da queimadura, tenta encontrar e apagar a beata, mas ela esconde-se bem. E na curva apertada, espeta o seu potente automóvel contra os separadores de cimento.
Como não levava cinto, voa através do pára-brisas e vai aterrar do outro lado da via, a 10 metros de distância.
Às 4 da manhã, são poucos os carros que por ali passam. Mas, poucos minutos depois, vinha um fiat punto amarelo, rebaixado, de vidros fumados. O condutor abre o vidro, e imediatamente escapulem-se as batidas de um hip hop manhoso de lá de dentro. Ao ver um corpo ferido no chão, e um carro virado do avesso do outro lado da rua, nem pensa em mais nada e vai socorrer a pessoa que ali estava.

- Você está bem?
- Hmmm! Não sinto nada... e o que sinto dói-me...! Foda-se! Tenho os ossos todos partidos... leve-me! Arghh... foda-se... nem consigo ver.

Então o outro homem levou-o ao hospital, onde toda a gente o conhecia. Rapidamente foi para o bloco operatório, onde o operaram a múltiplas fracturas expostas e dois traumatismos cranianos.
Esteve internado um mês, e faria fisioterapia durante um ano.
Entretanto, a sua visão da vida mudou muito. Teve mais tempo para descansar do trabalho, das noitadas no hospital, das longas intervenções cirúrgicas. Aproximou-se mais da família, lembrou-se do que o tinha levado a casar-se com a esposa, conheceu-a de novo.
Resolveu ocupar esse tempo a visitar amigos que não via há muito tempo; a ler romances e outros livros que não os de medicina; a ir ao cinema, a restaurantes diferentes, a ter novas experiências.

Numa dessas noites de devaneio, uns recentes amigos de copos levaram-no a um sítio clandestino, perto do bairro alto, que funcionava num prédio devoluto. O médico perguntou-se para onde o levavam, pois as escadas eram tão escuras que nem sabia onde punha os pés. De resto, como já estava para lá de Bagdad, podia estar em Espanha que para ele era igual.

- Aqui come-se uma cachupa óptima! Vais ver... com esses copos todos já precisas de qualquer coisa no estômago para fazer de mata-borrão!
- Pois, já comia qualquer coisa, já. Mas também bebia uma imperial! De certeza que é o sítio certo? Não parece nada...
- 'Tá descansado que é mesmo aqui. Tenho é que tocar à porta, a ver se nos ouvem...

Depois da porta aberta, saem os donos do "estabelecimento", uns caboverdianos bonacheirões, que perguntam se eles querem frango ou cachupa, enquanto os levam a uma sala atulhada de mesas ocupadas com gente a jogar às cartas, a rir, a tirar fotografias, a beber... e a comer cachupa.
Meia hora depois, enquanto estavam a comer, os amigos do médico levantam-se e vão à casa de banho. Então, ele observa com a sua visão turva a sala cheia de fumo, e saca de um davidoff.
Prende então o seu olhar numa pessoa que parece estar a olhar para ele fixamente. O enorme preto levanta-se e senta-se à sua frente, já bastante com os copos, e ficam a olhar um para o outro durante longos segundos. Então, falam ao mesmo tempo:

- Recuperou da cabeça?
- Então esses ossos estão no sítio, chefe? Grande espeta!

Ambos se calam e começam depois a rir, bêbados e desnorteados, enquanto dizem, Como é que você sabe? e se riem ainda mais, sem saber porquê.