Estou no carro e nem posso ouvir música, sob pena de gastar a pouca bateria que tenho para arrancar com o carro não sei para onde.
Lá fora está frio e chuvisca. O asfalto está molhado, e vai sendo enxugado por pneus que vez ou outra passam devagar à procura de lugar para estacionar. É já noite profunda e o silêncio impera, poucas vezes interrompido.
Ainda cheira a terra molhada, embora olhe pelas janelas do carro e não veja terreno virgem que pudesse apanhar as gotas de chuva. Chuva molha-tolos. Mas não molha o maior deles todos, que está abrigado.
A lua já não está cheia, mordida que foi por dois ou três dias que passaram.
Vejo à minha frente uma vizinha de quarteirão a tentar estender a roupa na marquise, daquelas cobertas com cimento esburacado em padrões rectangulares. Para além do padrão, há uma espécie de tela a todo o comprimento, iluminada por raios amarelos foscos vindos de dentro de casa.
Qual sombra chinesa, os gestos da minha vizinha fazem-me lembrar um louva-a-deus, de patas dobradas enormes e cabeça bem pequenina, na forma e na metáfora. Ela é bem linguaruda e venenosa segundo dizem e garantem a pés juntos. Um louva-a-deus não fala muito, mas tem um ar perigoso. Nem de propósito...
Como alguém disse um dia, a solidão de um homem vê-se quando todas as outras pessoas estão a dormir. Não sei se concordo. Podem estar a divertir-se à grande e à francesa, alheias à nossa existência. Olho para o conjunto de pequenos circuitos integrados que é o meu PDA, maravilha da tecnologia, e serve apenas para me dar ainda mais solidão. Não recebe mensagens, não recebe ligações, apesar de todo o potencial que tem para o fazer.
Talvez as pessoas se sentissem menos sozinhas quando não havia telemóvel. Pelo menos sentiam a angústia de ver o carteiro chegar sem correspondência, mas depois resignavam-se à impossibilidade de comunicação até ao dia seguinte...
As coisas aconteciam mais devagar antes, e portanto havia mais tempo para reflectir, sentir, agir em conformidade, e provavelmente ainda íamos a tempo mesmo com uma demora de dias, semanas, meses.
Se agora surgir uma dúvida, não há tempo para pensar. Não há tempo para cair em nós. Ou decides na altura, ou já passaste à história. Tens de ser rápido no gatilho, de remate fácil, falhando ou acertando, mas tens de o fazer. Se te deixas dormir perdes a bola. Que a vida é curta e há sempre alguém a querer ocupar o teu lugar e mostrar que é mais rápido a decidir.
Acho que estou muito atrás do meu tempo. Acho que me dava melhor no tempo das cartas sem correio azul, do ter de ir telefonar ao centro da vila, no tempo em que o sol demorava muito mais que doze horas por dia a pintar o céu, e em que por muito que quisessemos fazer uma loucura tínhamos de esperar pelo autocarro do dia a seguir.
O tempo está sempre a passar. Não o podemos recuperar nem guardar, só gastar. E passa cada vez mais depressa e sinto que não estou no mesmo compasso...
A vizinha-insecto já se recolheu, e já só vejo as silhuetas de enormes soutiens dos quais julgo vislumbrar os debruns rendados. Já não passam carros na rua. O telemóvel continua bem calado no banco do lado.
Acho que vou arriscar e ouvir no rádio uma música ou duas, para não sentir tanto a falta de apreciar estar sozinho. Não vou a lado nenhum, de qualquer maneira ...