2 de julho de 2008

Colorblind




Percorre o corredor que me leva do balneário até ao rectângulo de jogo. Sobe as escadas e ouve o barulho dos pitons a bater no chão. Ouve também já lá fora a música da liga dos campeões e o coração bate descompassado, seguramente a mais de 200bpm. Invade-o ansiedade dos grandes jogos, mas, como dizem os comentadores desportivos, essa ansiedade desaparece com o apito inicial do jogo.
Junto à linha lateral, vai aquecendo ainda com o colete amarelo berrante vestido. A multidão agita-se, e os flashes das máquinas fotográficas invadem o ar, obedecendo apenas à estocástica. Os cânticos arrepiam a relva. Os músculos retesam-se e sente-se vivo, como uma brasa velha a quem sopram.
Não obstante, vem de uma lesão prolongada. Diz-se nos jornais que passou ao lado de uma grande carreira devido às graves lesões e às más opções de gestão da carreira. Mas tudo o que ele queria era jogar futebol. Tudo o que ele sempre teve foi muito amor para dar à camisola.
Assim, o espectáculo começa com um silvo agudo que ecoa contra as cabeças dos espectadores, mas ele está no lugar a que já se tinha acostumado - o banco. Sente-se preparado para jogar, embora um pouco inseguro. "Estou pronto. Estou pronto. Estou pronto. Estou bem. Só preciso que me tirem de mim mesmo.".
Outrora, ele sabia bem o que havia de fazer à bola, e adivinhava a posição dos colegas de equipa de olhos fechados. Estes, por sua vez, sabiam exactamente o que esperar dele, e portanto tudo corria ordeiramente. Umas vezes melhor, outras vezes pior, claro. Que diabo, nem tudo pode correr sempre bem - a inspiração não é sempre a mesma, os relvados por vezes não ajudam, e até o árbitro pode ser malandro. Não obstante, a audiência entoa ainda várias canções com o seu nome.
O jogo não começou de feição para a sua equipa. Dois golos de rajada dos adversários provocam o desalento entre os jogadores. Para piorar, o jogador mais esclarecido lesionou-se e não pode regressar ao relvado.
Sente um baque no peito. "Será a minha chance? Não, claro que não. Vai meter mais um avançado e abrir o jogo. Ou então... talvez pôr um médio defensivo e jogar para não ser humilhado. Não me vai pôr a mim, de certeza".
Mas o treinador decide-se mesmo por ele. "Será uma jogada de moralização? Sou o mais velho, se calhar precisam de um líder para tranquilizar a equipa. Não compreendo ... ".
Recebe o braço do treinador por cima dos seus ombros. Vê a placa ser levantada com o seu número.
"Joga o que sabes" - diz-lhe o mister.
"Mas mister! Para onde vou jogar? O que quer que eu faça?" - entra em campo sem obter resposta, empurrado pelo 4º árbitro.
No emaranhado de jogadores e dos duros confrontos físicos, lá lhe passam a bola de vez em quando e a multidão faz frissom. Outras vezes, as suas opções parecem criticadas por todos, que parecem não o compreender.
"Não sei o que faça. Será que é para defender? Será que é para atacar?".
Desce no campo e começa a recuperar bolas. Os sócios não parecem contentes. Vai mais para a frente, tira dois adversários do caminho e passa a bola ao extremo, bem colocado. O treinador joga as mãos à cabeça, furioso. Num pontapé de canto da equipa contrária intercepta a bola com o peito e sai a jogar, e ouve os gritos da multidão. Continua com a bola, atravessa o campo todo, passa o guarda-redes contrário e marca golo. A assistência passa-se da cabeça, os comentadores ficam roucos. O jogador está feliz, conseguiu reduzir a desvantagem. É preciso continuar a correr atrás do prejuízo.
Logo a seguir, a equipa contrária marca mais dois golos, e toda a gente olha para ele com cara de poucos amigos. "Mas o que fiz eu? Era eu o defesa a pô-los em jogo? Tentei cortar a bola... não sei o que faça...". A poucos minutos do intervalo vê o seu número na placa de substituições.
Joga as mãos à cabeça e sente uma superfície aborrachada contra as gotas de suor da testa. "Que luvas são estas? Não me explicam nada...".
Para a história fica apenas o resultado.
*
A expressão "amigos coloridos" sempre me deixou algo desconfortável. Na verdade posso mesmo dizê-lo: odeio a expressão. Soa-me a hipocrisia, não sei explicar bem porquê. E o problema das cores é que são muitas, variam muito de intensidade, e deixam espaços entre elas onde podem entrar outras cores. Há sempre espaço para o vermelho vivo, mas também para o azul escuro....e nas pontas da paleta, há sempre o branco luminoso de um lado, e o preto do outro. O preto-necessidade-de-suporte-avançado-de-vida; o preto-ficar-a-soro. Quem não percebe, tivesse percebido.
E o pior de tudo é que um dos amigos coloridos, na tentativa de chegar ao branco luminoso (que nunca chega), arrasta o outro para perto do preto. Aí, uma das partes da paleta fica toda borrada - de medo, também. Também nestas coisas não há democracia. Aliás, se há coisa que é definida é a posição de cada um relativamente ao outro. Esta história faz-me lembrar os líquenes.
Odeio coisas-porque-sim. Que existem para passar o tempo ou para preencher não se sabe bem o quê. E portanto, naturalmente, odeio relações que não têm sentido, em si. Se ambos gostarem do outro, então não são amigos coloridos. Ou namoram, ou casam, ou juntam-se, ou, de outro modo, são amigos. Para quê as cores?
Tenho para mim que há sempre alguém que se lixa nesse tipo de "simbioses". Na verdade, nem sei porque é que pus aspas na palavra. Afinal é mesmo uma simbiose. Por definição, esse tipo de relações bióticas reserva para cada um dos intervenientes um papel diferente. É claro que as espécies podem viver separadamente, e na relação há sempre uma que tira um proveito revestido de maior dependência que a outra. Um deles fica porque gosta do outro a sério e tem dificuldades em se ver com outro qualquer. O outro... bem, o outro recebe interesse, companhia e afecto, em troca da sua tolerância. A pouca democracia prende-se com o facto de um deles estar satisfeito com a vida e com a perpetuação desse tipo de situações, enquanto o outro vive numa tensão, sem saber o que fazer à bola: se a chuta para canto e joga na defensiva, ou se pega no jogo, arrisca o peito às balas, e tenta virar a "contenda" a seu favor, que é, no fundo, aquilo que julga ser melhor - pelo menos, idealmente - para ambos.
O que queria sublinhar era o facto de estas simbioses serem feitas, por definição, a partir de duas espécies diferentes. Ou seja, não podem acasalar, procriar, etc. Acho que não me engano muito se disser que a bela e o monstro talvez não tenham sido feitos um para o outro.
Mas podem ser amigos.