Amanhã às dez, em algés. Combinámos assim mas não foi para rimar. Em frente à entrada do túnel da estação dos comboios.
Há sete anos, fizemos a mesma coisa. Fomos descendo. E descer é uma palavra engraçada de usar neste contexto, porque quem lê pensa que são só descidas, já que vamos para sul. Meus amigos, garanto-vos que não são só descidas. Assim de repente lembro-me de uma subida até Santiago do Cacém, que depois de bastantes km, ninguém acredita o que custa, a não ser os que fizeram.
Ia eu a contar: há sete anos fomos para sul, sempre de bicicleta, a parar em parques de campismo. Dois dias antes tinha-nos dado na cabeça ir para longe de bicicleta. E estávamos à noite, no meu antigo renault 9 - e eu nem tinha a carta na altura - com um mapa aberto em cima do volante, a traçar metas completamente irrealistas, como verificariamos mais tarde.
"E um dia vamos até à Rússia!" - diziamos.
Foi tudo em cima do joelho. Portanto, não é de admirar que cada um de nós levasse 30 quilos às costas, em mochilas de campismo.
Podia-vos contar tantas coisas... podia falar de como chegámos a Setúbal, logo no primeiro dia, totalmente rotos, e não nos queriam deixar ficar no parque de campismo - que agora já não existe - porque não tinhamos carta de campista. Isto depois de uns 70 km.
Também podia falar da insolação que o Chico (o outro da dupla CC) apanhou nesse dia, e das latas de Nívea que tivemos de comprar. Ou das marcas com que ficou no peito e nos ombros, por causa das alças da mochila serem demasiado finas.
Ou então, podia falar da forma como chegámos já ao fim da tarde do 2º dia à Praia da Galé, já sem água, sem comida nenhuma há uma data de tempo, e quando estavamos a montar a tenda o Chico me disse "vou ao wc", e eu respondi "ok", e foi a única coisa que dissemos um ao outro em 3 horas, tal não era o cansaço.
Ou podia referir a forma como, no meio do nada, algures entre Porto-Covo e a Zambujeira, descobrimos um café com uns velhotes alentejanos que não acreditavam que vínhamos de Lisboa com aquelas malas. Íamos com t-shirts presas com corda de sisal à cabeça, de maneira que nos chamaram de Arafat's. E quiseram pagar-nos minis... mas só bebemos um sumol cada um.
E à chegada à Zambujeira, foi a minha vez de quebrar fisicamente. Sentados num muro cá em cima, lá em baixo a praia, devo ter comido umas 6 sandes de queijo em 10 minutos, e depois ficámos ali a descansar indefinidamente...
Depois, nessa noite de autêntico verão, comemos ali sentados na rua um frango assado, que deve ter sido o melhor que comi na vida.
Podia por fim contar-vos como chegámos a Lagos e nos disseram que afinal não podiamos meter as bicicletas no comboio e voltar para Lisboa, ao contrário do que nos tinham garantido na CP do Barreiro. E de como, nessa noite, as pessoas se afastavam de nós na rua com medo de sermos assaltantes.
Para que vos estou a contar tudo isto?
Tentem imaginar, 30 kg às costas, sem suporte nas bicicletas para levar malas. Uma páscoa como nunca vi, com tanto sol que já me custava andar na rua, quanto mais pedalar debaixo dele. 350 km - sim, porque as bicicletas não andam nas autoestradas. Estradas em mau estado, não como agora, que foram arranjadas...
Duas mudas de roupa, a contar com a que tinhamos no corpo. Sem colchões para dormir, era mesmo ali, corpinho contra as pedras bicudas. A comer Atum Ok (sim, a marca é mesmo esta: Atum Ok) com feijão frade e a beber litros de água (excepção para o frango e para os sumóis).
Chegámos a Lagos e eu tinha as duas t-shirts com buracos, rasgões... todos nós eramos pó, nódoas, arranhões, não sentiamos nada, e o que sentiamos doía-nos.
Não havia telemóveis. Havia uns gigantes, mas não tínhamos.
É só para que o pessoal perceba que não tem a noção das distâncias só por ter ido e vindo do algarve umas 500 vezes de carro. Não dá para ter noção. E é para terem também a percepção de que por mais que me chamem maluquinho, não vão entender nem a essência da coisa, nem a dificuldade que é.
Se custa tanto, porque é que vão outra vez? Podem perguntar isso.
Vamos porque... e é difícil de explicar isto, mas vou tentar... é uma enorme sensação de liberdade estar longe de casa, no meio do nada, só com a força do nosso próprio corpo. Sem depender de ajudas de carros de apoio, ajudas de telemóvel, ficar em pensões, comer refeiçõezinhas em restaurantes, e todos esses confortos.
Enquanto pedalamos pensamos em tudo. Temos muito mais tempo para reflectir sobre as nossas vidas, lembrarmo-nos de coisas que nunca lembrariamos no meio da cidade, nas nossas vidinhas normais. Talvez as pessoas que já fizeram os Caminhos de Santiago de Compostela possam ter uma compreensão desta parte. Mas... meus amigos, multipliquem por 3 o esforço. Sem querer tirar o mérito.
Naquela altura a viagem foi muito importante para nós dois, de tal maneira que ano após ano tentámos combinar repetir, sem êxito, devido à dificuldade de encontrar calendários compatíveis. Este ano surgiu a chance, embora tivessemos de fazer opções complicadas para podermos ter condições para ir.
Naquele ano tive de tomar decisões de mudança de vida radicais, e tenho a certeza que a viagem me ajudou a amadurecer ideias. E hoje estou certo de que tomei as melhores decisões.
Este ano também será de mudanças. Acabo o curso, tenho de estudar para um exame muito complicado em Novembro, e também há decisões a tomar. Conto com esta aventura para que me ajude, de novo, a tomar os caminhos certos, mas também para me reencontrar com quem eu era há 7 anos. Não há nada que eu conheça de mais poderoso do que uma viagem deste tipo, no esforço máximo, no sacrifício físico máximo, para retomar uma visão global de todas as coisas.
Uma nota para os dois totós que quiseram ir para Dakar de bicicleta. Tenho lido o blog deles, e se já tinha alguma desconfiança quando vi a reportagem da RTP na partida deles, agora ainda estou mais renitente.
Não quero de maneira nenhuma fazer-me superior, mas... há 7 anos, eu andava de bicicleta todos os dias, fazia 30 km diariamente. Jogava futebol 3 vezes por semana. Encontrava-me num pico de forma que nunca mais voltei a ter, e que, sinceramente, não via em mais ninguém à minha volta. Era um desportista autêntico, e quem me conhece pode assinar por baixo.
Fiz esta viagem, com 30 quilos às costas, é certo, mas ia mesmo em forma. Com uma bicicleta BTT, mas uma boa bicicleta BTT, bastante leve. Fui até Lagos, fiz 350 km, mais coisa menos coisa. E... meus amigos... nunca nada me custou tanto fisicamente. Custou-me pa caraças.
Antes de ter esta bicicleta, tive outras, do Continente e do Jumbo, baratinhas, que estoirei completamente nas minhas voltas diárias - e não foi a fazer downhill... foi só estrada. Rebentei a roda pedaleira, os pedais, o eixo da roda pedaleira, as jantes, os travões, até um quadro consegui partir.
E o que vejo são dois totós - desculpem lá mas eles têm cara de totós - com bicicletas dessas, a irem para o Dakar. E vejo em fotos, eles sempre a sorrir. Eles no deserto, de chinelos em cima da bicicleta. Eles, com a pele até bonitinha, sempre a sorrir! Eles a sair de Lisboa, com camisas e de calças, a pedalar em bicicletas que aquilo não tem ponta por onde se lhes pegue. E queixam-se de terem partido raios da bicicleta. Jovens, eu andei milhares de km e nunca parti um raio. Ah! E supostamente eles estavam super fora de forma e nunca tinham andado assim muito de bicicleta.
Quando fui a Lagos - e reparem, a distância não é comparável, fiquei todo FODIDO da pele. Caiu-me duas vezes em 6 dias. E eu não estive em África! Gostava de ter encontrado as fotos - sim, eu tirei fotos há 7 anos atrás, e não foram digitais - para poder provar umas coisas. Vou tornar a andar à procura delas.
Andar de bicicleta de chinelos não é uma opção. E calças? E as camisolas de malha com que eles aparecem, todos bonitos, nas fotos? Onde é que eles levam a tralha toda?
E mais... eu até consigo fazer 50 km de plano numa boa, mesmo em baixo de forma. No dia a seguir ando a coxear, com as pernas a parecerem troncos, mas consigo. Agora imaginar o dia a seguir, e depois, e depois e depois... indefinidamente até chegar ao destino... e aparecer a sorrir para a fotografia do blog? Jovens, a gente ao fim do dia nem falava um com o outro de tão descompensados que estávamos!
Queriam ir com 1000 euros até Dakar. Achei a ideia muito engraçada, mas... eu há 7 anos para ir até Lagos, exclusivamente pelos meus próprios recursos, gastei mais de 100 euros, e fui muito poupadinho. Fiquei em parques de campismo e comia enlatados (que levei, alguns deles! = mais peso às costas). Mas eles têm ajudas, ficam na casa de pessoal e tal, mas ... planearam ficar em pensões e jantar assim. 1000 euros? 1000 euros quase que não dá para sobreviver em casa dois meses, quanto mais ir para o Dakar de bicicleta. Nem à nossa maneira, quanto mais à deles!
Há aqui demasiadas coisas que não batem certo. E portanto, eu não acredito.
Mas, abro aqui uma dúvida razoável: se realmente for verdade e lhes estiver a custar pa caraças... dou a mão à palmatória. Só que aquele blog... parece que estão a passar férias num interrail.
Um dos maiores riscos que corremos é quando os camiões nos ultrapassam. Mas se vierem contra nós, eles é que vão capotar! Rijos!
Quando voltar, talvez tenha algo para contar. Até ao meu regresso!