As perguntas mais inquietantes são aquelas que persistem, por mais elementares que sejam as respostas.
Abrandaram diante da casa enorme, a mais imponente daquele bairro. Ela já tinha passado ali perto sozinha várias vezes nos últimos dias. A sondar o movimento e a aura. A ganhar coragem. Hoje finalmente tinha chegado a altura da incursão.
O automóvel azul escuro, novinho em folha, acabou por se deter mesmo em frente à porta da casa. Era uma casa de traçado antigo, muito bem conservada; a fachada disparava para a rua várias janelas com portadas de madeira branca, dispostas por dois pisos, e protegidas por cortinas translúcidas. As paredes eram de pedra negra, e do telhado vermelho emergia uma enorme clarabóia panorâmica, de onde se podia sair para um minúsculo pátio. De resto, a casa era envolvida por um relvado bem cuidado, rodeado por uma cerca branca, que de tão baixinha que era, mais convidava a entrar do que a ficar do lado de fora.
As pessoas que passavam na rua - mesmo aquelas que ali viviam há anos e já conheciam bem a casa - paravam sempre a admirá-la. «Que bela casa!» - repetia alguém todos os dias. Afigurava-se-lhes, realmente, como a mais imponente do bairro, apesar de apenas conhecida pelo exterior. Dos donos, pouco ou nada sabiam.
- Tem cuidado. Não te demores, faz só o que tens a fazer e vem-te embora.
- Sim. Vou num pé e venho noutro.
- Olha que é mais fácil assim.
Olha para ela nos olhos, beija-a e vê-a a sair do carro. Afasta-se devagar, e vira ao fundo na esquina.
Ela respira aquele ar gelado do princípio da tarde. O sol branco, brilhante demais, bate nos resquícios de neve que ainda derretem no chão. De olhos quase fechados, aproxima-se a passos curtos e silenciosos da porta da casa, com uma caixa de cartão debaixo do braço esquerdo. Desfaz a neve com os pequenos sapatos, e a neve retribui molhando-lhe a ponta dos pés. Estaca diante da porta e sustém a respiração; o coração rebenta-lhe nas artérias do pescoço, a garganta palpita-lhe e os olhos enevoam-se com o nervosismo. Lança a mão direita à maçaneta gelada – é o último momento para voltar atrás. Mas não o faz.
Como imaginara, não estava trancada.
Entra decidida com a caixa na mão, e logo os passos ecoam na casa vazia, desviando pequenos montes de serradura e lascas de madeira dispersos pelo soalho. A casa cheira a madeira envernizada. O rés-do-chão não tem mobília, e conta apenas com a luz natural que vem de fora e penetra nas cortinas de tom creme-translúcido, que abanam devagaríssimo, quase imperceptivelmente, empoladas do ar que sopra pelos dois dedos de nesga de janelas esquecidas de fechar; essa luz difracta então em todas as direcções, e os raios, de ângulos amplificados, dançam caleidoscopicamente pelas paredes, tacteando as imperfeições do estuque, procurando indícios de passagens secretas.
Ouve-se música – sem dúvida proveniente do primeiro piso - a tocar bem alto; porém, perde força na viagem, e chega-lhe suave aos ouvidos…
«… when I was young, it seemed that life was so wonderful,
A miracle, oh it was beautiful, magical…»
… e na enorme sala, que constitui o rés-do-chão inteiro da casa, apenas impede a vista o desfilar de pequenos pilares de madeira que sustentam o tecto. A meio da sala, desmaiada ao fundo, uma escadaria clássica de madeira – carunchosa, porventura rangente – apresenta o caminho para o piso de cima. Por cima da balaustrada carcomida, alguns pingos de cera denunciam a ausência de luz eléctrica na casa; um bule fumegante, uma caneca e um açucareiro parecem esperar alguém…
«… teach me how to be sensible,
logical, responsible, practical…
and they showed me a world where I could be so dependable,
Clinical, intellectual, cynical…»
… e, por breves momentos, deixa-se atingir pelas sensações que aquela casa, apesar de decrépita, ainda lhe causa. Pousa então a caixa no chão, e, quando se vai a levantar, sente uma presença qualquer atrás de si. Olha por cima do ombro, ainda de cócoras, e vê um grande cão de pêlo dourado, que olha para ela, estático, à espera. Quando os olhares se cruzam, o cão aproxima-se de rabo a dar a dar e lambe-lhe o nariz. Abraça-o, afagando-lhe a cabeça e cantando-lhe as palavras da música à orelha…
«… at night, when all the worlds asleep,
The questions run so deep
For such a simple man…»
… até que o cão se solta dos seus braços, sobe as escadas e a deixa sozinha.
Então, faz que se levanta, mas olha novamente para a caixa, percorrida no topo por uma fita castanha que apenas finge que a encerra, tantas as vezes que já foi descolada e recolocada no mesmo sítio. Põe-se de joelhos, e as suas mãos abrem-na de novo; lança o olhar vago sobre o conteúdo; remexe-o uma última vez, lentamente, acariciando cada objecto, cada fotografia, como se quisesse sublinhá-los com os dedos na memória…
«… I know it sounds absurd,but please tell me who I am… »
… mas, num assomo de determinação, fecha de novo a caixa e levanta-se rapidamente em direcção à porta de casa. Repara então em duas pequenas caixas que não tinha visto, também elas de cartão, também elas fechadas por fica adesiva castanha, escondidas por um dos pilares de madeira,. Numa das faces de cada caixa, estavam escritas as suas iniciais. «Nem foi capaz de escrever o meu nome…» - pensou.
Pegou nas caixas sem intenção de as abrir. Mas os passos abrandaram-se-lhe, e os olhos enevoaram-se-lhe de novo. O coração começou a bater novamente mais depressa à medida que se aproximava da porta de casa para sair.
Voltou para trás.
Largou as caixas no mesmo sítio, subiu lentamente as escadas, de pernas a tremer, e chegou a um corredor. Estava mais escuro do que no rés-do-chão, mas conseguiu vislumbrar numa das paredes uma fileira de retratos de mulheres. À medida que ia percorrendo o longo corredor, os retratos emoldurados iam ficando mais amarelados, os penteados mais antigos, e os vestidos démodé.
Chegou então perto da porta do fundo, de onde emanava a música, agora mais acústica e calma, ouvindo com atenção e de riso nervoso a estalar-lhe na boca pelo ridículo da situação…
«…wave goodbye, wave goodbye…
You know I don't want to cry again
I'll never see your face again
I don't want to cry again…»
… e quase tropeçou num monte de molduras rachadas, encostadas à parede da direita. O coração baqueou e cortou-se-lhe a respiração. Ficou muito quieta a segurar nas molduras para que não caíssem, com tanta força que as farpas lhe penetraram por baixo das unhas até ao sabugo. Gemeu para dentro de dor.
«… wave goodbye, wave goodbye…»
Reparou melhor nas molduras imperfeitas. «O importante é não desistir e começar de novo se for preciso, não era o que dizias sempre?» - relembrou.
Aproximou-se e encostou o ouvido à porta, de respiração sustida. Para além da música, conseguia ouvir o ssrrRRT ssrrRRT de madeira a ser lixada. Ficou ali de ouvido preso e olhos fechados durante longos instantes, imaginando-o do outro lado, no seu atelier, a trabalhar. E cantava em uníssono, em voz muito baixinha, a música que só agora conhecia e a contagiava…
«… wave goodbye, wave goodbye…»
… até que sentiu um leve encostar de pêlo de cão de encontro às suas pernas. Tentou segurá-lo e dizer-lhe baixinho que estivesse quieto, mas já foi tarde: começou a raspar com as patas na porta. Queria entrar.
Conseguiu então acalmá-lo. Mas a música do outro lado da porta e o lixar da madeira calaram-se. Uma onda de calor e frio invadiu-lhe a cara e percorreu-lhe as costas até atingir os pés ainda molhados. Durante poucos segundos debateu-se com pensamentos confusos. O que fazer? Largou o cão, que ficou a olhar para ela, confundido. Queria que a porta se abrisse, mas não sabia se queria. Sentiu-se fraca e desamparada. Tudo aquilo lhe parecia sem sentido; toda aquela situação era um absurdo.
Quando estava disposta a abrir a porta, ouviu o barulho de um carro lá em baixo a esmagar a neve com os pneus e a parar.
Punho no ar, ar no peito, peito nas mãos.
Quando ia jogar a mão à maçaneta, sente no bolso do casaco o vibrar do telemóvel. O cão recomeçara a raspar a porta com as patas.
Vira costas, finta as molduras rachadas, e enquanto corre lança um último olhar à fila de retratos que tanto odiava. E do lado esquerdo do retrato mais recente ainda viu que estava um prego espetado na parede. Desceu as escadas rapidamente, deu um encontrão na bandeja do bule - que já não fumegava - por cima da balaustrada, e caiu tudo no chão. Pegou nas caixas encostadas ao pilar e saiu de casa. Esmagou com passos apressados o resto da neve do caminho de pedra que rasgava o relvado, e entrou no carro, ofegante.
- Vamos embora para o outro lado. Está muito frio.
*
E lá em cima, no primeiro piso, adivinha-se o rosto dele a espreitar o carro que virava a esquina, por entre uma cortina translúcida que abana imperceptivelmente ao sabor da sua respiração rítmica e profunda. Tornou a ligar a música.
«… take a look at my girlfriend
She's the only one I got
Not much of a girlfriend
Never seem to get a lot…»
«Bela música… do belo ano de 79» - pensou.
Abriu a porta ao cão e deu-lhe um safanão carinhoso na bochecha.
Voltou a lixar a moldura, quase pronta, enquanto pensava no rio, braço de mar que nunca tinha sentido tão largo como agora, a passar por debaixo de uma ponte que durante algum tempo imaginou feita de duas pessoas de mãos dadas.
«Porque é que eu não lhe disse? Provavelmente não acreditaria».