23 de maio de 2007

A minha vida é uma mentira - Doutor da mula ruça


Tenho para mim que a minha vida é uma mentira, talvez apenas superada pela farsa do cão e do gato. Desde pequenos que nos habituaram a ver o Tom a fugir daquele cão grande e atarracado com picos na coleira; a modos que era sempre o gato a ir parar à casota do cão nesses desenhos animados, e nunca era o cão a ir à gamela de leite do Tom (não é o Tom Sawyer, esse corre com os calcanhares a bater na nuca atrás do barco a vapor; falo do Tom e Jerry), mas a perseguição tem sempre sentido único no imaginário de toda a gente. Os nossos cãezinhos domésticos já não sabem caçar gatos, pá! A única carne que bastantes deles experimentam vem em puré e enlatada, ou então já foi cozida e estufada quatrocentas vezes e vai-lhes parar à bocarra depois de ter estado 10 minutos a arrefecer no nosso prato, e é se não estivermos com muita fome...
O que vejo na rua é cães a ser passeados pelos donos, pachorrentamente, e de repente salta-lhes um gato à frente. Os cães normalmente não prestam muita atenção, estão ali para fazer xixi ou comer erva, mas os sacanas dos gatos! Ouriçam-se logo todos e mandam-se aos cães como se não tivessem nada a perder! Amigo cão, vou-te vazar um olho com as minhas garras! (sempre adorei esta expressão, "vazar um olho". Faz-me imaginar que, quando no deserto, e em apuros, até podemos ficar cegos, mas à sede não havemos de morrer. Ou os olhos, ou um camelo com uma torneirinha numa bossa, ou então aqueles cactos marados). No outro dia, pela primeira vez, vi um dono a sair à rua à noite com um gato preso pela trela. Na altura pareceu-me completamente ridículo, mas depois de pensar nisso mais a fundo até tinha razão de ser.
Lembrei-me agora de um jogo para pc que eu jogava há bastantes anos, que era o Cat. Assim um jogo com gráficos CGA, fantásticos para quem estava habituado ao Spectrum (mais uma vez, os nossos olhos vêem aquilo que as nossas experiências deixam). Nós eramos um gato que tinha que entrar nas janelas de um prédio de apartamentos e realizar um sem número de tarefas, como apanhar ratos, passarinhos, peixes, comer a comida dos cães, e, claro, emprenhar o maior número de vezes possível uma gata branca que por lá andava - claro que nós eramos um gato preto. E como gatos pretos que eramos, podiamos morrer de todas as maneiras: levar com objectos atirados das janelas por moradores descontentes; morrer electrocutados num aquário com enguias eléctricas; ser perseguidos por cães; ser picados por aranhas (!?)... etc. Ou tinhamos 3 ou 5 vidas, já não me recordo. Mas não eram 7. Os gatos devem gostar muito de números
primos.

Dizia eu que a minha vida é uma mentira. Quando a minha mãe me parte a cabeça por não lavar a loiça (ou me parte a loiça por não lavar a cabeça) ou por fazer virtualmente nada em casa, eu digo-lhe que ando a estudar muito (o que nem é totalmente mentira, bem vistas as coisas) e que vou para o hospital salvar vidas. Mas depois chego lá aos estágios (não todos, mas a maioria) e fico lá com os meus colegas em pé até me doer as pernas, dentro de um gabinete de consulta ou enfermaria, a tentar mostrar que estou ocupado, ou nem isso. Dizem-nos para estar às 8 e meia ou 9 num determinado serviço, e depois mandam-nos beber café até às 10:30 (sempre ajuda a disfarçar os olhinhos de peixe cozido). Quando lá chegamos, dizem que não há assistentes para que possamos assistir às consultas. Então vamos para casa, decerto com a sensação de dever cumprido, e bastante mais enriquecidos com a experiência única que é beber o conhecimento in loco. Vamos para casa fazer o quê? Marrar. E, claro, nem sempre com a ajuda de um plano de conteúdos da cadeira em causa, como é o caso de oftalmologia. Muito haveria para dizer sobre este estágio, mas, porventura, não me apetece. Até me parece que alguém aqui há de escrever sobre isso (pelo menos foi o que me prometeram à boca pequena).
Mas estou no 5º ano, e acho que sei tanto de medicina como a curandeira que vende pau-de-cabinda no centro comercial de Queijas - imaginem uma cave, onde se entra por uma porta ladeada por paredes que dizem: "putas, 500$" ou "Queres boi?", e do outro lado há uma horta ladeada por umas madeiras podres cheias de pregos, com umas couves assim muito altas mas quase sem folhas (decerto haverá por ali coelhos suburbanos gigantes); imaginem que essa entrada tem aquele chão com uma tijoleira assim cor-de-laranja, com bolinhas, e depois entra-se lá dentro e é tudo muito escuro e com luzes fluorescentes a falhar, boas para se ficar epiléptico, e vê-se uma sala fechada cheia de máquinas de jogos onde, conta-se com ar grave e sério, já foram assassinadas várias pessoas por motivo de ajustes de contas (esta é outra expressão que adoro, "ajuste de contas"); e depois há um cabeleireiro com posters de modelos tipo Samantha Fox e outras que tais (por baixo diz "New fashion haircuts"); e depois uma peixaria, que tem lá daquelas lâminas verticais eléctricas de cortar peixe em postas que fazem aquele barulhinho kkzzznhhhhhhhiiiiiiiiiiiickzzz que nos faz imaginar imediatamente um aparatoso acidente laboral (mas hei! eu sou médico! estou lá para salvar vidas); poderia falar ainda da pequena lojinha que vende pilhas, despertadores, disfarces de carnaval muito maus e bombinhas que eram ano após ano proibidas, mas que lá havia sempre à venda - novamente imagino putos agarrados a uma mão que explodiu (calma, amigos, eu sei fazer um garrote, faz parte da minha profissão); no rés-do-chão desse centro comercial, há a Palidisco, uma papelaria que vende luzes de natal, transformadores de corrente alterna, balões... e por mais que tente, nunca há de me dar o prémio do euromilhões.
Adoraria continuar esta descrição, acreditem em mim: é terreno fértil.
Anyway: todas as pessoas que trabalham ali sabem mais de medicina do que eu. A peixeira, a cabeleireira, a curandeira. Até a mulher-a-dias (com todo o respeito que me merecem as mulheres-a-dias, porque eu morria entoxicado em Sonazol ao segundo dia) sabe mais do que eu. Todas elas, na sua área, são mais eficazes a curar maleitas, digo-vos! Até o Merlin sabia mais que eu, como físico da corte! (sabiam que o Merlin é metido ao barulho na série Stargate? que palhaçada). Sou o Dr. Phraud. Sou o doutor da mula ruça!
Estes estágios têm sido uma completa perda de tempo, energia, paciência, gasolina. E cada vez mais penso que só vou começar a aprender coisas mais práticas quando for atirado para dentro da arena de leões que é um hospital, e agora safa-te! Assim como fazem aos bebés nos países nórdicos quando os mandam à água gelada! Espero para meu bem que todos os humanos estejam, por instinto, preparados para exercer medicina, bastando um estímulo de sobrevivência para pôr mãos à obra. De médico todos temos um pouco, como dizem, não é?
Talvez quando tiver que trabalhar no meio de galinhas que falam mesmo muito alto e sem respeito pelos doentes que descansam; talvez quando tiver que ir às reuniões clínicas discutir casos, e agora sim, estiver sentado à mesa como interno, em vez de ter que marcar presença, em pé, esmagado contra um distribuidor de água, na sala de 3 metros quadrados, juntamente com os meus colegas alunos, a estoirar de riso pelas piadinhas que mandamos uns aos outros sobre os doutores... talvez aí eu aprenda a curar alguém.
Talvez nessa altura eu já possa levar pistachos para essas reuniões. E fumar charutos. Como me dizia aqui há dias um doente lá da enfermaria: "a mim não me deixam fumar aqui, mas eles fumam! eu sei que eles fumam! eu consigo sentir o cheiro! e são Cohibas! malandros é o que eles são! patifes!".

Nunca digo o que faço se não me perguntarem. Mas se perguntarem, ficam muito admirados. Medecina? Andas em Medecina? Grandá crânio. Sinto-me logo um macrocéfalo...
E já andas nos estágios? E eu respondo logo que sim, que salvo vidas todos os dias, e depois rio-me do que acabei de dizer. As pessoas fazem um sorriso amarelo, que sim, que entenderam a piada. E depois dizem que querem consultas à borla, que é sempre bom conhecer um médico. E eu digo "Queira deus que nunca precises dos meus serviços!". Nesta altura da minha vida esta escapatória tem um duplo sentido, embora as pessoas não o topem. Mas fica sempre bem dizer, que fica toda a gente muito contente, "Ah, ele desejou-me saúde de forma tão inteligente!".

O meu conselho de médico neste momento é, seja para que problema de saúde for, esfregar com água-rás. Acreditem em mim, eu vou ser médico, devo ter razão de certeza. Deixa de haver problema. E jogue Squash se tiver mais de 50 anos e factores de risco cardiovasculares.
Desculpa lá, mãe. Eu não salvo vidas. Não sou insuflável nem feito de plástico cor-de-laranja.
Tenho para mim que a minha vida é uma mentira, mas uma mentira repetida muitas vezes torna-se verdade; talvez volte a escrever daqui a uns aninhos sobre isto. E talvez me sinta bem.