24 de maio de 2006

Cantiga d'Amigo, escárnio e maldizer


Ai ondas do rio Trancão
Haveis visto a minha paixão?
Haveis sabido da minha perdição?
Ai Deus i u é...?

Achei-a era ainda criança
Também me pareceu mansa
Não deitei as garras de fora
Para quê tanta demora?
Não pensei que fosse embora!

Ai lodo do rio Liz
Sabeis da minha perdiz?
Sabeis da minha actriz?
Ai Deus i u é...?

Achei-a no meio do mato
Pareceu-lhe que não estava apto
E enquanto não ato nem desato
Fez de mim miau-sapato
Por pouco não lhe bato!

Ai águas revoltas das Fontainhas
Sabeis novas da minha rainha?
Ela come a babugem das tainhas!
Ai Deus i u é...?

Fui dar uma granda vôlta
Para achar as pontas soltas
Andei sempre de meias rotas
Ainda assim conheci umas garotas
E outras tantas marotas!

Ai ardente areia de Carcavêlos
Tu que andas sempre a vê-las
Sabeis da minha gaja?
Ai Deus i u é...?

Quando voltei um granda malandro
Logo a ouvi chamando
E enquanto a ia papando
Mandei-a para o camandro
Mandei-a para o camandro!!

Ai vagas do rio Jamor
Tendes novas do meu amor?
Serei só um sedutor?
Ai Deus, i eu é?
Ai Deus ... i eu é.
:)

23 de maio de 2006

Para o infinito e mais além...

Quando somos pequenos, tudo o que é grande ou muito é assim por volta dos mil. Um prédio tem para ai uns mil metros de altura, um barco pesa de certeza mil quilos e acho que a minha avó tem quase mil anos embora ela insista que não. Entramos para a escola e apresentam-nos o conjunto N. Heina pá, tanto número! Os nossos débeis paradigmas são abalados quando nos apercebemos que existe o número mil e um. E também existe o dois mil, o dez mil, o noventa mil. Nesta altura estabelecemos o nosso tecto nos milhões. Tudo o que é muito é porque deve ser da ordem dos milhões. É por esta altura que descobrimos que os dinossauros viveram há milhões de anos atrás! O conjunto N0 é absolutamente redundante para nós pois para que serve o zero? Já sabiamos há muito tempo que tudo começa no zero.

Depois avançamos na nossa vida, e a complexidade aumenta duma maneira que as nossas escalas já não servem, assim como se o nosso saber fosse um insecto em crescimento e as escalas fossem o esqueleto de quitina que tem de ser renovado. Abraçamos o conjunto Q. Como todos os alicerces quando são mexidos fazem abanar as estruturas, a complexidade perde-se na escala, e o nosso saber perde-se na imensidão do esqueleto de quitina. É aqui que ficamos a saber que em média um automobilista pode ter 3,2 acidentes por ano, que podemos comprar meio quilo de laranjas e que há temperaturas negativas. Aqui sim, paramos ao esbarrar de frente com o sólido exoesqueleto. Eu já sabia que o fim era dificil de saber onde era, mas o princípio também não se sabe? O infinito, aquilo que ainda não queremos pensar que exista, pois revela a falta de existência.

Eis o conjunto R. Ainda meio atordoados com a possibilidade de termos 3,2 acidentes por ano, ainda com o pensamento de porque raio não baixam as escalas de temperatura, tomem lá esta: o infinito! Mas, então não há inicio, não há fim? Aqui começamos a pensar em estradas, no céu, no mar e pensamos, há mais que isto? O problema aqui é que ninguém nos situa. Não faz sentido dizermos a distância daqui ao Porto em milimetros, nem o comprimento dum lápis em quilómetros. Como não nos conseguem explicar isso (ou não conseguimos compreender) apresentam-nos a recta real!

A recta real, diz a professora pegando no giz e desenhando uma linha no quadro. Não tem princípio nem fim, com o zero aqui no meio, páli numeros positivos, do outro lado os negativos. Primeira pergunta: onde está essa recta, passa onde? Já sabemos que ali ao fundo é o infinito, bemo como lá na outra ponta, o mais e o menos infinito. Ficamos descansados pois o nosso conhecimento está balizado! Finalmente a nossa escala já parece ser pequena para o nosso conhecimento, já não pode crescer mais, afinal é do infinito que estamos a falar!

As escalas são traiçoeiras, sempre dispostas a pregar rasteiras ao conhecimento e à capacidade de entendimento dita humana. Com o nosso campo definido, chegamos ao ponto onde alguém nos diz: quantos números estão entre um e dois? Mas que raio de pergunta, toda a gente sabe que estão, ora... bem... pois, não sei. Ai não sabe? Então eu digo-lhe: infinitos números! Caos, é a única coisa que me lembro dessa altura. Infinitos números estão entre um e dois? Eu sabia que eram muitos mas infinitos? Infinito é o número de números que existe. Mas pera lá, se existem infinitos números ao todo, e se existem infinitos números entre um e dois, como pode ser possível? Um infinito é maior que o outro? Mas se o infinito é tudo, desde o mais ao menos, como é que há infinitos no meio do infinito? Há infinitos maiores e outros mais pequenos? Não pode ser! Como é que duas coisas que não começam e não acabam podem ser maiores ou menores? A realidade parece ter ultrapassado em grande escala o conhecimento, o que nos dá maiores motivos de alegria. Há muito desconhecido por ai, temos de o por a descoberto, temos de continuar a pensar e a retirar das trevas o conhecimento ai retido pelas escalas! Se não quisermos, também não faz mal, é só uma questão de escolha de escalas, como a nossa vida!

12 de maio de 2006

A minha pedra preciosa

Quando acordei naquela manhã com umas dores abdominais difusas insuportáveis, percebi logo que aquele ia ser um dia especial, daqueles marcantes, que mudam o rumo da vida de uma pessoa. No hospital deram-me injecções para aguentar a dor, e disseram-me para beber muita água em casa. Disseram-me também que o problema era num uretero, e que provavelmente ia dar à luz num dos próximos dias. Aconselharam-me a ter cuidado quando fosse à casa de banho, não fosse o rebento cair também na sanita, juntamente com as águas.

Satisfeito, fui para casa. Sim, satisfeito, porque apesar de não ter útero, tenho uretero (e logo dois!) e se o nome não é muito diferente, a função também não deverá variar muito. E eu sempre quis ter um filho. Mal cheguei a casa, fui logo pesquisar na internet. Como se teria formado o meu menino? Que nome lhe daria? Naquela altura tive a certeza de que carinho não lhe faltaria. Disseram-me no hospital que aquele era o primeiro de vários que um dia poderiam nascer também, visto que se viam em formação na ecografia. Ou seja, o meu filhote irá ter maninhos!

Poucos dias depois, enquanto mijava para um alguidar (não fosse eu perder o menino juntamente com a água do banho), finalmente pari. Eureka! Mas não flutuava, o que dizia muito do seu peso. Três quilos e setecentas! That's my boy! A avaliar pelo seu aspecto verde escuro, homogéneo, parecia uma safira pronta a polir.Decidi chamar-lhe Pedro. Pedro Rocha. Sempre achei que deveriamos olhar para a cara do recém-nascido antes de lhe darmos o nome, porque muitos nomes influenciam o carácter da pessoa. E este tinha mesmo cara de Rocha. Parecia aquele do Duarte e Companhia.

Claro que comecei logo a fazer planos para o futuro do Pedro. Ele tinha necessidades especiais; não poderia andar na escola como os outros meninos. Ele não é violento, mas como é muito rijo e com arestas poderia magoá-los nas correrias próprias da infância. E sabemos como as crianças podem ser cruéis umas com as outras quando detectam alguma diferença. Não que ele seja muito diferente dos outros, mas é preciso uma pessoa como eu, madura, adulta e equilibrada, para perceber que no fundo vão todos dar ao mesmo. Só que eu gosto mesmo muito do Pedro e quero o melhor para ele.

Ainda me lembro de como foi concebido com amor! Com muito chocolatinho, muito sal na comidinha, pouca águinha (afinal, não queria que ele se constipasse enquanto crescia devagarinho na minha barriga), muita carninha da melhor, vermelhinha e tudo! Pois claro que o Pedro tinha de sair especial. Os meus pais não acharam muita piada por ter um filho tão novo, e por ter engravidado sem mãe. Afinal, uma criança precisa da influência dos dois pais! Mas eu convenci-os quando disse que apesar de ter nascido com muita dor, era muito desejado com certeza. É o produto do meu amor pela boa vida.

Um dia, quando for mais velho, vou levá-lo a passear a sítios bonitos, para que possa ver os tios da Peneda Gerês, os sobrinhos das Penhas Douradas, um primo afastado que nasceu numa pedreira mas teve muita sorte e até está bem na vida - deu origem ao CCB - e as fragas da serra da estrela podem ser suas amigas quando despertar para o sexo oposto.
Quando souber ler, vou poder mostrar-lhe um novo amiguinho imaginário, que o Obelix traz sempre às costas. "Vês, Pedrinho? É o Menir!". Os miúdos precisam destas referências culturais para poderem crescer em harmonia.
Também passarei com ele pela coluna de pedra em que bati com o carro há poucos dias, para que aprenda os perigos de permanecer à beira da estrada.

Depois, quando for adulto, auguro-lhe um futuro excelente. Se o Cutileiro for vivo, e se entretanto tiver havido outra revolução, talvez possa meter uma cunha para que transforme o meu filho numa bela estátua, assim numa estação de metro ou no topo de um grande jardim lisboeta, para que toda a gente o possa ver! Ou então talvez os Duques de Bragança possam encomendar um conjunto de jóias da coroa inteirinho. Três quilos e setecentas devem dar para fazer um brilharete.