Há dez anos atrás, em plena morna adolescência, costumava jogar freneticamente um jogo que se tornou para toda uma geração um clássico dos computadores: o Doom. Não é um jogo muito complicado. Bastava crivar de balas todas as criaturas que se me deparassem à frente, evitar os projécteis que voavam de tudo quanto é sítio, e ir correndo sempre em frente para avançar até ao próximo nível. Mesmo assim, quando as coisas corriam menos bem, lá caía no chão, e o ecrã tingia-se de vermelho antes que conseguisse apanhar uma daquelas malinhas de primeiros socorros (brancas, com uma cruzinha vermelha) que me devolviam magicamente parte da energia e garantiam assim a sobrevivência.
Isto porque os adversários eram realmente maus, e a sua razão de existência era exclusivamente aniquilar-me. E voltava ao início do nível, desarmado, o que complicava muito a tarefa.
Isto porque os adversários eram realmente maus, e a sua razão de existência era exclusivamente aniquilar-me. E voltava ao início do nível, desarmado, o que complicava muito a tarefa.
Mas não fazia mal. O jogo permitia que salvasse infinitas vezes a situação, e por isso bastava apenas restaurá-lo a partir de onde tinha salvo por último. E isto dava uma sensação de segurança que me encorajava a avançar destemidamente (entenda-se irracionalmente) contra as hordes de inimigos. Sem medos! Se morrer morri! Da próxima vão ver...
Viciei-me de tal maneira neste tipo de jogos "save now, die later", que me lembro que ia para a cama a pensar neles, e mesmo nos sonhos dava por mim a recomeçá-los quando não me agradavam, qual realizador em busca de um filme perfeito. E foi um conceito que de tal forma se interiorizou em mim que, em inúmeras situações reais, quando tinha que tomar uma decisão, ou quando estava perante um dilema, ou ainda quando algo corria mal, havia um pequeno arrepio que me percorria; um calorzinho acendia-se no meu estômago e o coração batia duas ou três vezes mais depressa, enquanto numa fracção de segundo essa ideia de segurança aparecia subitamente, para depois desaparecer da mesma forma. Como se me lembrasse: "não te preocupes, podes voltar atrás!" e imediatamente depois "ah, isso é no jogo". Durante vários anos, mesmo depois de deixar de jogar computador, isso aconteceu-me inúmeras vezes.
Viciei-me de tal maneira neste tipo de jogos "save now, die later", que me lembro que ia para a cama a pensar neles, e mesmo nos sonhos dava por mim a recomeçá-los quando não me agradavam, qual realizador em busca de um filme perfeito. E foi um conceito que de tal forma se interiorizou em mim que, em inúmeras situações reais, quando tinha que tomar uma decisão, ou quando estava perante um dilema, ou ainda quando algo corria mal, havia um pequeno arrepio que me percorria; um calorzinho acendia-se no meu estômago e o coração batia duas ou três vezes mais depressa, enquanto numa fracção de segundo essa ideia de segurança aparecia subitamente, para depois desaparecer da mesma forma. Como se me lembrasse: "não te preocupes, podes voltar atrás!" e imediatamente depois "ah, isso é no jogo". Durante vários anos, mesmo depois de deixar de jogar computador, isso aconteceu-me inúmeras vezes.
Quando era ainda mais novo, aprendi rapidamente que os erros nos ditados podiam ser corrigidos apagando com borracha de tinta. No entanto, não podia apagar muitas vezes, porque se assim fosse acabava por deixar uma janela para o outro lado da folha. No entanto, não era grave. Nestas idades temos sempre oportunidades infinitas para aprender, e as consequências dos erros nunca são demasiado dolorosas.
Muito mais tarde, quando comecei a desenhar com o intuito de exprimir sensações e sentimentos, apercebi-me de que o uso da borracha comprometia o trabalho final. Se o lápis fosse muito duro, vincava o papel; se fosse demasiado mole, borrava o desenho. Decidi naquela altura que nunca mais usaria borracha nos meus desenhos. Enquanto desenho, vou esboçando a ideia com traços leves, gradualmente mais intensos, até terminar a minha expressão. E os traços aberrantes (ou erros, dependendo da perspectiva) vão sendo, mais do que substituídos, sobrepostos por outros traços mais fortes, que os endireitam, como suportes para feijoeiros mágicos. E os erros, em vez de suprimidos, passam a fazer parte da massa global do desenho, tal como as linhas de força. Não desapareceram, estão lá, embora quase imperceptíveis para outros olhos que não os meus.
Nos jogos de computador, temos todas as oportunidades que quisermos para seguir em frente. Normalmente até podemos fazer batota e ter vidas infinitas. E com os "saves" de situações anteriores, até sabemos como é o jogo dali para a frente, o que o torna desleal para os nossos inimigos. Na infância e adolescência, contam com os nossos erros e chegam a encorajá-los para depois nos mostrarem que é com eles que aprendemos: é o mesmo que nos ajudarem a desenhar as letras com a mão sobre a nossa e manejando o lápis por nós, ou como nadar com braçadeiras...
Quando desenhamos, também temos muitas oportunidades de endireitar o que ficou torto, e mesmo que o resultado seja péssimo podemos sempre tentar outra vez. As segundas oportunidades dependem, nestas circunstâncias, da nossa vontade.
Mas crescemos.
Toda a minha vida foi feita de segundas oportunidades, e não me canso de o referir. Mudei de corte de cabelo, de curso, de namorada, de roupa. Mudei de ideias. Em alguns casos mudei de valores. Excepcionalmente, mudei até de princípios. Mas quanto mais velho fico, mais me convenço de que é cada vez mais difícil obter segundas oportunidades. Mais, mais, mais exigência. Menos, menos, menos tolerância.
Errar é humano, perdoar é divino. E as pessoas normalmente não são divinas, pelo que não dão segundas oportunidades umas às outras. As decisões são cada vez mais difíceis de tomar, porque acarretam consequências progressivamente mais pesadas. "Estás a ficar um homenzinho!" - diziam os grandes quando só tinha meio metro. Mas agora que tenho pouco mais de metro e meio e ainda me sinto muito novo e verde, achar-me-iam pretensioso se me quisesse escudar na posição de puto inexperiente. Para além disso, vivo num mundo em que quase todos os que me rodeiam se regem pelo princípio de que não há segundas oportunidades para causar primeiras impressões...
O disparar de um tiro; o acto de travar para evitar um acidente; uma frase que apetece dizer, um virar de costas irresistível, um beijo que se quer roubar... cada vez menos há a liberdade de optar sem consequências. Cada vez menos tenho a noção do que vai acontecer a seguir. E, para piorar, cada vez tenho menos tempo para escolher o rumo a tomar em cada encruzilhada; algumas vezes são dias, outras horas, e em casos específicos temos de agir em segundos, sob pena de perder o timing: o interesse de uma pessoa que nos agrada; o segundo certo para uma fotografia; a reanimação de uma pessoa em paragem cardio-respiratória. Toda esta pressa maximiza a probabilidade de fazer escolhas erradas.
Aprendi à custa de muitos remorsos a arrepender-me apenas do que fiz, e não do que não fiz. Bem sei que é um lugar comum, mas evita que nos atormentemos com o passado.
Mas agora a tormenta é outra, e muito mais forte, à medida que chego ao cume da montanha do ser-se adulto.
É que é muito doloroso ter que esperar por uma segunda oportunidade que nunca irá chegar...