16 de abril de 2005

Comunicado aos autores e leitores

Caros leitores e colaboradores:

Pela primeira vez, escrevo um post directamente no quadrinho próprio do blog para esse efeito, em vez de escrever um rascunho prévio no notepad do windows. Faço isto porque quero que seja o mais genuíno e o menos literário e estilístico possível, e porque quero ser o mais claro que me for possível. Quero também atingir o objectivo que pretendo, sem provocar a curiosidade de uns e ferir a susceptibilidade de outros.

Decidi, por várias razões, mudar o endereço do blog a curto prazo. Gosto muito do nome deste, mas infelizmente é inevitável. Queria pedir-vos a vós, leitores assíduos que querem realmente continuar a ler os nossos textos, que me enviem um feedback: se quiserem podem comentar aqui, deixando os vossos emails para que vos possa dizer qual é o novo endereço do blog, e também para poder construir uma newsletter que vos avise de posts novos, em vez de ter de estar a mudar o meu nick do msn para avisar o pessoal! Ou então enviem-me um email para valdispert@hotmail.com.

Também queria pedir aos meus amigos colaboradores que não enviem mais posts para aqui. Os novos posts serão publicados no novo blog.

As razões que me levam a fazer isto ficam para mim. No entanto, é com o objectivo de ajudar indirectamente a permitir uma gotinha de Paz no Mundo: a minha!

Grandes, grandes cumprimentos, sob as formas indicadas consoante o caso :)

João

3 de abril de 2005

O Sótão





Semi-nu, sentado no mármore frio do último patamar, permaneceu encostado à parede crivada de pequenas pedrinhas de todas as cores, como em tantos outros prédios. Respirava profundamente o aroma a lavanda da lixívia, ainda suado, na escuridão quase absoluta. De repente, do fundo do poço surge o ruído de uma chave à porta; alguns passos de salto alto viajam lá de baixo, ricocheteando em todos os degraus, nos corrimões, nas portas cerradas, amplificando o som ecoante até ao expoente do medo. Acenderam a luz. Chamaram o elevador!
A respiração fica-lhe mais rápida e menos profunda. O suor torna-se glacial, o mármore começa a queimar-lhe o rabo. Continua quieto, na expectativa. O elevador não pára de subir, o barulho é cada vez mais alto; bate-lhe agora o coração muito depressa: "será que é desta vez que vêm cá acima e me descobrem?".
Depois do tempo que dava para ter subido a pé as escadas inteiras, pára o elevador, no piso imediatamente abaixo, que é o último que poderia atingir. Os saltos altos ecoam na escada, mais afiados, mais definidos, ainda mais altos. Dá duas voltas à chave e abre a porta. Ouve-se o barulho de sacos de plástico transportados para dentro de casa, mas a porta de casa teima em não fechar.
A luz apaga-se, mas acendem-na de novo. Com o coração a mil, surge o receio que oiçam o seu batimento. Respira bem devagarinho para que não o oiçam - qualquer barulho pode ser fatal - a ponto de quase sufocar. "Devem ter ido às compras; quando acabarem de levar tudo para casa entram e pronto! Tenho de ser racional: alguma vez vinham cá acima à uma da manhã?" - pensa.
- Onde é que queres pôr estes vasos?
- Não sei, põem-se lá em cima na escada ao pé do sótão, depois logo se vê!
- Então não feches a porta!
Aterrado, levanta-se muito depressa e veste-se em tempo recorde; muito mais depressa do que se tivesse acordado de repente e faltassem apenas 3 minutos para perder o autocarro.Lava líquida queima-lhe a traqueia e os pulmões. A boca e a garganta estão áridas como se tivesse abocanhado saquinhos de bolinhas de sílica desumidificadoras. Deixa de haver limite definido entre inspiração e expiração.
Carregado com os tais vasos, esse alguém sobe, um a um, os degraus do primeiro lanço de escadas. Vê-lhe a cabeça branca a surgir, por entre os corrimões. Olha para um lado e para o outro. Olha para cima, para o chão, procurando um buraquinho para onde se enfiar, uma pedrinha para se esconder debaixo! Nada. O desespero, o batimento do coração como se de um pássaro pequeno e assustado se tratasse. O que faria o Macgyver nesta situação?
"Tenho de fugir, mas estou encurralado! Vai-me ver!"
Encosta-se à sólida e trancada porta de madeira escura do sótão, enquanto arfa descompassadamente e o peito lhe oscila. De olhos postos nos degraus do último lanço, sobe o senhor com os vasos, cada vez mais próximo, até que chega ao patamar e os pousa no chão. Olha então de relance para a porta do sótão, e, calmamente, torna a descer as escadas.
*
Combalido, levanta a cabeça e tosse aflitivamente. Há pó por todo o lado. A rinite alérgica mostra rapidamente a sua raça, e começa logo o nariz a pingar água.
Tinha caído para trás, desamparado; a porta tinha mudado de estado físico - de sólida para uma fase fluida cristalina, de textura do tipo mousse de chocolate caseira - e tinha permitido que ele entrasse no sótão.Já tinha analisado mil vezes aquela porta noutras alturas, pensando para si mesmo que se ali fosse encurralado no patamar um dia, daria jeito poder abri-la. Brincando, tinha até simulado que a arrombava; no entando, tinha-se sempre demonstrado muito rija e impenetrável para quem não possuia a chave. Também por isso imaginava por vezes o que é que se encontrava naquele sótão.De si para si, confuso, pensou que fora aquele conjunto de acontecimentos, aquele contexto, que teria propiciado a mágica salvação ao momento de apuro. Talvez que o desespero elevado ao extremo tivesse invocado um milagre. Ou então aquela porta era saída de uma história mista de Stargate com Hansel and Gretel.
Levantando-se e sacudindo o pó, contempla o sótão. Do lado direito da sala, rasgam-se janelas altas e finas, palacianas, por onde penetram na escuridão feixes corpóreos de um sol amarelo de meio-dia. A toda a volta se encontram vultos de variadas formas envoltos em lençóis que, outrora presumivelmente brancos, são agora amarelos, lavados vezes sem conta por aquela luz que queima.Naquela sala, a única coisa que mexia eram as partículas de pó, que voavam incessantemente com movimentos brownianos.
Os seus passos faziam um barulho parecido com o afastar de duas tiras de velcro; o chão: pegajoso, como no fim de uma festa com cerveja, mostra agora as pegadas imprimidas em meio centímetro de espessura de cotão.
A meio do quarto, uma cama individual, com uma coberta de tecido azul claro, era a única peça de mobília visível, perfeitamente limpa e arrumada. Senta-se nela e vê com mais pormenor o resto do sótão. Nos parapeitos das janelas há molduras deitadas, pequenos vasinhos com cactos, vários animais de peluche e outros bibelots.Encostados a uma das paredes estão dois colchões de casal, com aspecto muito antigo, e um amontoado de material informático completamente obsoleto, invadido pelo pó. Numa outra parede, mais perto da porta, pedaços irregulares de espelho encontravam-se pendurados, envolvendo todo o sótão em reflexos solares.
Ao fundo, uma mesa redonda exibe um lindo bolo coberto com chantilly e morangos cortados às metades, encertado recentemente. As únicas duas fatias cortadas (uma bastante maior que a outra) encontravam-se num pratinho ao lado, por cima da faca triangular. Um pequeno papel tinha escrito: "COME-ME".
Toda aquela energia gasta pelo momento de stress despertou-lhe a gulodice, e decidiu seguir a instrução dada. Mordeu então a maior das fatias. Era um bolo muito doce, com sabor a alegria e festa. Suculento, leve, que se lhe desfazia na boca. Enquanto mastiga, inspira bem fundo, respirando a tranquilidade que quem está seguro e é amado. Senta-se de novo na cama e come o resto da fatia, sentindo-se subitamente apreensivo. "A porta... como é que aquilo aconteceu? E ele olhou para mim! Como é possível que não tenha visto o que aconteceu?"
A apreensão acentua-se, enquanto engole o último pedaço. "Será que é possível sair daqui?"
Receoso e inquieto, avança para a segunda fatia de bolo. No entanto, come-a quase instantaneamente; sente-o amargo como as amêndoas, enquanto começa a ficar desesperado. "Este bolo, aqui? Porquê? Isto é muito estranho...".Arranca então avidamente com a mão mais um bocado do bolo, e mete-o todo na boca, sujando-se com o chantilly.
Começa a sentir-se pesado, como se a gravidade tivesse aumentado de repente. Os olhos cansados tentam fechar; arrasta então o corpo para a cama e deita-se, sonolento mas estranhamente feliz e descansado. Sente-se dopado, tonto e a alucinar, enquanto mastiga o bolo lentamente, como uma tartaruga, ainda com metade por fora. Olhos semi-abertos, braços estendidos como um cristo. Mentalmente vai cantando uma música dos Jesus and Mary Chain:
"Listen to the girlAs she takes on half the worldMoving up and so aliveIn her honey dripping beehiveBeehive
It's good, so good, it's so goodSo good
Walking back to youIs the hardest thing thatI can doThat I can do for youFor you
I'll be your plastic toyI'll be your plastic toyFor you...".
Sente então a cabeça muito quente, e o suor a escorrer-lhe pela cara. O cheiro a mofo e humidade invade-lhe as narinas, e torna-se-lhe impossível respirar.Antes de apagar, ainda vê à sua frente um vulto enegrecido pelos feixes de luz que entram pelas janelas e lhe batem na cara; distingue ainda umas palavras dissolvidas por entre uma gargalhadinha doce e contagiante:
- Eu sabia que duas fatias não te iam chegar!
*
Com o pescoço e as bochechas molhadas com o sangue que escorria, e com a fronha enfiada nas tralhas mais variadas, acorda e levanta a cabeça. Tinha batido com toda a força na porta da mala do carro, enquanto tentava secar com folhas de jornal a água da chuva que se tinha infiltrado, e ali ficou, de cabeça para baixo, barriga empoleirada e joelhos encaixados no pára-choques, de encontro à matrícula.