Ela já me havia dito que não acreditava na Fada dos dentes, e que planeava guardar todos os dentinhos que lhe caíssem para depois receber as moedas todas juntas. Quando me disse isso, equacionei de forma breve instruí-la para que pedisse à mãe as moedas em dólares, mas deixei cair a ideia. Só que ela tinha um dentinho da frente a abanar já há bastante tempo. Teimava em não cair.
A mãe dela entregou-ma no fim de semana e delegou-me a tarefa de forma indirecta. "Vejam se me trazem o dentinho no domingo!". Isso fez-me recordar o tempo em que era criança, en que, por mais do que uma vez o meu pai me tentou tirar um dente de leite a abanar e eu estava cheio de medo; recusei várias tentativas por métodos diferentes, e acabei a chorar, mas sem dente. A verdade é que eu era um bocado *onas.
Contudo, acabou por ser ela a abordar-me ao fim da tarde sobre o assunto.
A minha filha - Pai, queres tentar tirar o dentinho?
Fiquei surpreendido com o ímpeto.
STP - Posso tentar, filha, deixa ver ... (tentei apanhá-lo entre os dedos com um bocadinho de papel para não escorregar, um pouco como faço com as senhoras nas urgências - normalmente são senhoras - quando lhes tento tirar anéis de há mil anos de dedos inchados depois de os besuntar em sabão líquido. Às vezes digo-lhes que sou muito bom a tirar anéis mas não sou bom a pô-los, e elas riem-se).
Ela disse logo: "O papel é para não escorregar...". A assunção encheu-me de orgulho, porque ela intuiu imediatamente aquilo que muitos adultos não conseguem entender mesmo após explicação.
Tentei, mas não consegui.
STP - Sabes, filhota... o que dava aqui jeito era uma linha... Mas não sei se consigo arranjar agora. Se calhar temos de comprar amanhã.
A minha filha - Já sei! Tive uma ideia! Porque é que não usas as linhas da árvore de Natal?
Sim, eu ainda tenho a árvore de Natal montada. E antes que pensem em abanar a cabeça mentalmente porque o dia de Reis já passou... a verdade é que a tenho na sala desde o Natal de 2023. Mas não vale a pena focarmo-nos agora em procrastinações. Não percebi imediatamente o que me estava a tentar propor, mas ela trouxe-me uma bola de Natal com uma linha dourada.
Depois de tentar desatar os nós de várias linhas de vários enfeites de Natal, disse-lhe que não estava a conseguir, mas que tinha sido uma ideia incrível e que o pai ia tentar arranjar alternativa.
Enquanto vasculhava por gavetas e móveis, vi uma bugiganga que comprei num hipermercado em cima de uma mesa de apoio. Tratava-se de uma maquineta que supostamente fatiava dentes de alho, feita de plástico, e que à primeira tentativa de uso tinha conseguido desmontar o fio de arame de que dependia o alegado mecanismo de corte. Era um fio fino, flexível, e até diria que seria feito de nitinol se não tivesse sido comprado no Continente por 1,99 euros ou coisa que o valha. Se eu corto tão bem alho com uma faca, porque é que precisava de uma porcaria daquelas? Bem, pareceu-me boa ideia comprar aquilo na altura.
A minha filha - Mas isso é metal... não é um bocadinho estranholas?
STP - Podemos tentar! (até passei nos meus dentes primeiro).
A minha filha - Então vamos!
Abriu assim a boca e colocou o queixo em prognatismo para me pôr em evidência o dente dançante. Andei ali um bocadinho às voltas mas consegui dar dois nós à volta do dente e disse-lhe que dissesse "Ahhh!". Ao mesmo tempo puxei o fio para cima e foi fácil.
Ela esbugalhou os olhos ao ver o dente preso ao fio, e riu-se muito. Mas eu olhei-lhe para a boquinha e estava com bastante sangue. Claro que foi a correr ver ao espelho da casa de banho, e temi que se assustasse. Fui atrás dela e quando me disse que tinha sangue, houve ali aquele meio segundo em que não percebi se estava assustada ou não. Decidi fazer eu uma cara assustada e fingir que fugia dela. "Aiiii tanto sangue, aiiii vou fugir daqui, socorro!". E abri a porta de casa e fingi que ia assustado a sair a correr e descer as escadas a fugir com medo. E ela veio atrás de mim a rir-se incontrolavelmente a meter-me medo de boca aberta a dizer "âââââhhhh!!!" altíssimo, enquanto os sons faziam tremer o corrimão de metal das escadas do prédio.
A vizinha do lado abriu a porta para ver o que se passava mas estacou e nem ultrapassou o tapete da sua porta. É que, normalmente, sangue não rima com gargalhadas. Confusa, tornou a fechar a porta sem que eu conseguisse explicar.